Compartilhando diferenças

Menos de 1% do nosso DNA guarda alterações que nos diferenciam uns dos outros. O que nos faz semelhantes já é bem conhecido desde que o sequencimento do genoma humano foi concluído há uma década. Mas essas variações, que podem fazer a diferença entre desenvolver ou não câncer, entre ter resistência a um determinado medicamento ou responder bem a ele, ainda são pouco entendidas.

Com o intuito de mudar esse cenário, um grupo de cientistas criou com o apoio da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) o Projeto Varioma Humano, um consórcio internacional para o livre compartilhamento de informações sobre o conjunto de variações genéticas associadas a nossa saúde, o varioma. Por meio de uma plataforma online, a iniciativa busca aproximar cientistas e incentivá-los a disponibilizar sem custos no meio científico e médico o conhecimento sobre as alterações genéticas já detectadas e suas consequências. Cerca de 30 países já aderiram ao projeto. O Brasil não está entre eles.

A CH On-line conversou com um dos líderes do pretensioso Projeto Varioma Humano, o geneticista e Sir John Burn, da Universidade de Newcastle, Reino Unido. Nesta entrevista, Burn fala sobre os desafios técnicos e éticos da genética nos próximos tempos, as novas estratégias para facilitar o acesso a testes genéticos e, é claro, sobre a importância de identificar, estudar e compartilhar informações sobre as variações em nosso DNA.

John Burn

CH On-line: O mapeamento do genoma humano foi um dos grandes feitos da ciência nos últimos anos. O que representará o mapeamento e a decodificação do varioma? 
John Burn: O mapeamento do genoma sem dúvida foi um passo muito importante. E esse tipo de procedimento está cada vez mais acessível. Nossa capacidade de fazer testes de DNA chegou a um nível incrível e um exame de genoma completo que custava 100 mil dólares em 2000 hoje custa cinco mil. Mas sequenciar o genoma de uma pessoa de modo fácil e barato é inútil a não ser que possamos determinar quais variações presentes em uma sequência do seu DNA têm efeito sobre sua saúde. Esse é o nosso maior desafio hoje. 

Falta muita informação sobre a maioria das mutações já detectadas no genoma humano. Sabemos que elas existem, mas não conhecemos suas consequências. Ou, o que é ainda mais preocupante, mesmo quando essa informação existe, não é compartilhada entre a comunidade cientifica e os médicos. Pode ficar perdida em algum artigo científico obscuro.

Por isso é preciso que as variações genéticas e suas consequências sejam compartilhadas livremente. Essa é a ideia do Projeto Varioma Humano, ser uma plataforma de compartilhamento de dados entre a comunidade científica e promover a inserção dessa informação na clínica diária. Nossa meta é um cenário em que o acesso à informação sobre variações genéticas não seja um impedimento para o diagnóstico. 

Apesar do custo dos testes genéticos ser cada vez mais baixo, eles ainda ficam restritos a pessoas com maior poder aquisitivo e não são de tão fácil acesso. No Brasil, por exemplo, não há clínicas que façam o genoma completo.  Como o Projeto Varioma Humano pode contribuir para que o diagnóstico genético de doenças seja acessível a todos? 
Acredito que no futuro o teste de genoma vai desaparecer. Não faz sentido fazer um genoma completo para procurar variações genéticas associadas a uma determinada doença se você já conhece essas alterações. Com o conhecimento do varioma e seu significado, poderemos cada vez mais fazer testes específicos que sairão mais baratos. As tecnologias de sequenciamento genético estão cada vez mais simples e descartáveis. Já estamos desenvolvendo na minha empresa, a QuantuMDX, cartões para testes de DNA que vão permitir fazer um exame que hoje custa 15 mil dólares – como é o caso do exame para detecção da variação para câncer de mama que a Angelina Jolie fez – por apenas 10 dólares e com o resultado nas suas mãos em 10 minutos. 

“Acredito que no futuro o teste de genoma vai desaparecer. Não faz sentido fazer um genoma completo para procurar variações genéticas associadas a uma determinada doença se você já conhece essas alterações”

Há milhares de mulheres como a Angelina Jolie por aí e nós só não sabemos. Se pudéssemos localizá-las de forma mais eficiente, poderíamos ajudá-las. Uma das estratégias para isso é desenvolver um desses cartões para detectar todos os marcadores de câncer conhecidos. Se você tiver mutações associadas ao melanoma ou a outro câncer de pele, elas serão detectadas em um teste como esse. Mas para isso as informações sobre as mutações devem ser compartilhadas. Isso é o que mais me instiga.

Há muitas aplicações. Podemos desenvolver testes para doenças infecciosas ou para detectar um tipo específico de tumor e então usar a terapia mais adequada. Outra possibilidade é usar esses testes para verificar a resistência da pessoa a determinados tratamentos. Há pessoas, por exemplo, com diabetes que não precisam de insulina, podem tomar um medicamento específico mais eficaz para elas. Mas como ninguém fez o teste genético para detectar a mutação que leva a esse tipo de diabetes resistente à insulina, essas pessoas estão recebendo insulina. 

Igualdade não é tratar todos do mesmo modo, temos que reconhecer que algumas pessoas são diferentes e, ao entender as diferenças, podemos prover vidas melhores a elas. Hoje é inimaginável que um médico abra sua gaveta e dê o mesmo remédio para tratar todo mundo. Mas por que não ficamos surpresos com situações como essa da insulina ou com o tratamento de câncer que usa quimioterapia como primeira frente em vez de recorrer a testes genéticos que podem dizer exatamente qual é o tipo de tumor e o medicamento mais adequado para ele?

Teste  de DNA
A partir da detecção das variações genéticas associadas a doenças, Burn desenvolve cartões para testes rápidos de DNA capazes de dizer se alguém carrega uma mutação associada ao câncer em 10 minutos. (foto: Divulgação)

Os cartões de teste de DNA serão um avanço para a saúde pública, poderão ser usados por hospitais ou individualmente. Você vai poder comprar um cartão como compra uma música no iTunes, recebê-lo em casa e fazer o teste você mesmo.  

E como fica a relação entre médico e paciente? Não pode ser perigoso que o paciente aplique o teste em si mesmo sem orientação médica? 
As análises genéticas já estão mudando a relação entre médico e paciente. Hoje, se você fizer um exame genético para saber se carrega uma determinada mutação, seu médico pode descobrir que você também tem a mutação do câncer de mama, por exemplo, mesmo que você não queira saber disso. Temos que encontrar formas de lidar com isso. A pessoa pode, ela mesma, procurar pelo teste e depois se encaminhar a um médico que vai lhe oferecer tratamento personalizado. 

O senhor usa as informações captadas pelo Projeto Varioma Humano para fabricar esses cartões de teste de DNA na sua empresa? Não existe um problema ético na exploração comercial desses dados?
Por enquanto, ainda não estamos usando dados do Projeto Varioma Humano para isso, mas essa é a nossa ideia em um futuro próximo. Sobre a ética, minha resposta é seguinte: não acho que deveria ser permitido patentear alterações genéticas, como ocorre hoje com a mutação BRAC, do câncer de mama, nos Estados Unidos. Tudo funciona muito melhor se compartilharmos tudo. Mas meu caso é diferente. Se eu gastei muito dinheiro desenvolvendo um teste que detecta algumas dessas variações e investi tempo tentando conseguir aprová-lo nas agências reguladoras, então tem que haver um ponto em que a propriedade intelectual possa ser defendida. Uma boa comparação é a escrita. Eu tenho a propriedade intelectual sobre o que eu escrevo, mas não tenho a propriedade intelectual sobre o alfabeto. Da mesma forma, não tenho propriedade sobre as alterações genéticas, mas o que faço com elas, os testes que crio, são minha propriedade.

Como funciona na prática o compartilhamento de informações entre os integrantes do Projeto Varioma Humano? Quem tem acesso às informações do projeto? 
A ideia do projeto é que cada país desenvolva um grupo de representantes, uma comunidade de cientistas e profissionais envolvidos na análise de DNA que ajam em nome do seu país para desenvolver um sistema de padronização de metodologias e métodos para compartilhar informação internamente e também de forma anônima no banco de dados internacional que mantemos.

Por exemplo, eu estive empenhado em juntar equipes de pesquisa do Canadá, Austrália e Alemanha que estudam as alterações genéticas ligadas à síndrome de Lynch, uma doença hereditária associada ao aparecimento de câncer de cólon. Agora, temos um banco de dados internacional onde cada time pode inserir e obter informações; lá estão listadas todas as alterações que já foram identificadas. Há ainda a opinião de nossa equipe internacional de pesquisadores sobre qual dessas alterações é clinicamente importante.

“Países como o Brasil, que têm uma enorme mistura étnica,  poderiam se beneficiar enormemente com o Projeto Varioma Humano”

O que tentamos fazer é identificar, em cada país, entusiastas que nos ajudem a construir bancos de dados nacionais e alimentar o banco internacional. No Brasil, por exemplo, sabemos que no sul do país há milhares de mulheres que carregam uma alteração genética específica ligada ao câncer de mama que só foi vista até agora nessa região. Essa informação precisa ser compartilhada com o mundo para que outras pessoas, de outros lugares, com essa alteração possam saber. 

 O senhor esteve no Brasil durante o 6º Fórum Mundial de Ciência, no final do ano passado. Chegou a ser procurado por alguém interessado em construir uma rede por aqui? 
Não tivemos nenhum pedido formal, mas tive uma conversa bem produtiva com alguns cientistas brasileiros e o professor Peter Pearson, da Universidade de São Paulo (USP). Países como o Brasil poderiam se beneficiar enormemente com o Projeto Varioma Humano. Aqui vocês têm uma mistura étnica enorme e seria muito bom se fizessem parte de uma comunidade científica global para compartilhar conhecimento sobre alterações genéticas, pois você, por exemplo, pode ter antepassados da África ou da Ásia. Com o compartilhamento de informações, você pode descobrir que carrega uma mutação para uma doença que é especifica de uma região do planeta e pode ter respostas que não teria se recorresse apenas à informação produzida e disseminada dentro do país.


Sofia Moutinho
Ciência Hoje On-line