Cortando o mal pela raiz

Os medicamentos antirretrovirais têm sido a principal ferramenta de combate à Aids. Segundo o recém-divulgado relatório do Programa das Nações Unidas para Aids (Unaids), até o final de 2012, cerca de 9,7 milhões de pessoas tiveram acesso à terapia e a meta é que 15 milhões de pacientes estejam cobertos até 2015 – atualmente estima-se que haja 16 milhões de pessoas diagnosticadas.

O tratamento farmacológico, no entanto, não se mostrou capaz de eliminar por completo a infecção pelo HIV, pois não age sobre os vírus latentes, que ficam silenciosamente integrados ao DNA humano e podem ser reativados a qualquer momento. Pesquisadores agora se valem de uma proteína bacteriana para fazer ‘microcirurgias’ no genoma e extirpar o vírus invasor.

Acoplada a um pedaço de RNA guia, a proteína ‘deletou’ partes importantes do vírus, erradicando-o do genoma humano e impossibilitando a sua reativação

A proteína usada é a Cas9, responsável pelo ‘sistema imune’ das bactérias. Ela corta fragmentos de material genético de vírus invasores e os incorpora ao DNA bacteriano. Quando a bactéria cruza novamente com o vírus que contém aquela sequência genética, o identifica como inimigo e o ataca. Essa habilidade tem sido aproveitada por pesquisadores para modificar trechos de DNA humano. Acoplada a uma molécula de RNA criada em laboratório que lhe serve como guia até segmentos específicos do genoma, a proteína Cas9 se direcionada a uma sequência de DNA equivalente à representada pelo RNA e a corta fora.

No início do ano, pesquisadores da Universidade da Pensilvânia (EUA) usaram a Cas9 para modificar o receptor celular CCR5, ao qual o vírus HIV se liga para entrar nas células do sistema imune humano. Com a intervenção, as células de 12 pacientes passaram a ficar resistentes ao HIV, o que impede uma infecção inicial, mas não resolve o problema dos vírus escondidos, já instalados e misturados ao DNA humano.

Hoje, pesquisadores da Universidade Temple (EUA) publicaram um artigo no periódico científico PNAS em que relatam ter usado a Cas9 para atingir diretamente os vírus HIV latentes em células do cérebro in vitro. Acoplada a um pedaço de RNA guia, a proteína ‘deletou’ partes importantes do vírus, erradicando-o do genoma humano e impossibilitando a sua reativação – tudo isso sem prejudicar o DNA do paciente, que foi reparado pelo próprio organismo.

Modificação de DNA
A proteína Cas09 é acoplada a uma tira da RNA que serve como guia e se une apenas a uma sequência de DNA equivalente à do RNA. Quando a sequência é encontrada, a Cas9 abre a dupla hélice do DNA e corta fora o material genético viral. (montagem: Sofia Moutinho)

Segundo os cientistas, a estratégia, ainda não testada em pacientes, funciona não só para acabar com uma infecção já existente por HIV, como também para evitar novas. Ao menor sinal de tentativa de integração do material genético do vírus HIV com o DNA humano, a proteína Cas9 entra em ação destruindo o invasor.

“Podemos explorar vários sistemas e rotas para aplicar a Cas9 em indivíduos já infectados com o HIV e também para imunizar indivíduos de grupos de risco”, dizem os autores no artigo da PNAS.

Promissora, mas não prática

O geneticista Renato Santana, que conduz pesquisas de combate ao HIV com terapia genética na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pontua que a nova abordagem é “extremamente relevante e de fácil manipulação no laboratório”, mas ressalta que ainda é necessário desenvolver métodos eficientes de aplicação da estratégia nos pacientes.

Uma das possibilidades seria injetar a proteína Cas9 acoplada ao RNA diretamente na medula óssea, importante reservatório de vírus latentes e fábrica de células sanguíneas. Mas o procedimento não é trivial.

“A entrega da Cas9 nas células ainda é complicada; a repopulação da medula é um procedimento custoso, que requer muito cuidado e não é viável como estratégia de tratamento de grande abrangência entre a população”, pondera Santana. “A abordagem pode ser boa a longo termo, mas, a curto prazo, as estratégias farmacológicas ainda são mais plausíveis.”

Santana: “A abordagem pode ser boa a longo termo, mas, a curto prazo, as estratégias farmacológicas ainda são mais plausíveis”

O pesquisador nota ainda que, antes de se pensar no uso dessa terapia, é preciso garantir que a estratégia seja segura. Um dos perigos é que a Cas9 corte não só o genoma viral, mas sequências relevantes do DNA do paciente. “Várias partes do nosso genoma são oriundas de vírus inseridos em nossas células há milhares de anos e elas controlam processos relevantes ao desenvolvimento celular, como o transporte de colesterol e a formação da placenta”, explica Santana.

Para o pesquisador, as estratégias que miram na reprogramação das células para torná-las resistentes ao HIV são mais seguras por enquanto. Em seu laboratório, Santana e colegas trabalham nessa linha e desenvolvem uma abordagem que impede a entrada do HIV nas células e, ao mesmo tempo, destrói os vírus que conseguirem entrar. “Estamos tentando tornar as células duplamente resistentes”, diz Santana. “Modificamos o receptor CCR5 para que o vírus não entre e, se ele escapar, uma proteína entra em ação e modifica o vírus, tornando-o inativo.”

Por outro lado, o grupo da Universidade Temple destaca que sua pesquisa com a Cas9 está em plena ascensão e evolui rapidamente, de modo que a abordagem proposta tende a ficar cada vez mais próxima da aplicação clínica. “A edição genômica por Cas9 tem mostrado uma eficácia promissora e suas propriedades podem fornecer um caminho viável para uma cura permanente da Aids e outros vírus patogênicos”, concluem os pesquisadores no artigo da PNAS.

Segundo o novo relatório da Unaids, estima-se que existam 35 milhões de pessoas infectadas com HIV no mundo, das quais 19 milhões não foram diagnosticadas. Apesar de apresentar queda global, a taxa de novas infecções pelo vírus da Aids aumentou 11% no Brasil entre 2005 e 2013, impulsionada principalmente pela maior transmissão da doença entre indivíduos de grupos de risco, como homens homossexuais.

Sofia Moutinho
Ciência Hoje On-line