Da cultura popular ao tubo de ensaio

Da próxima vez que sua avó sugerir uma ‘receitinha’ para curar qualquer machucado, pense duas vezes antes de negar-se a tomar o ‘remédio’. A garrafada conhecida como “específico pessoa”, há muito tempo utilizada nas regiões Norte e Nordeste como proteção contra picadas de animais peçonhentos, foi o ponto de partida para que pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) sintetizassem uma substância ativa contra vários tipos de veneno de cobras.

A coral é uma das espécies cujo veneno pode ser combatido pelo composto sintetizado na UFRJ (foto: Giuseppe Puorto/Instituto Butantan)

O composto, chamado edunol, é encontrado na planta cabeça-de-negro ( Harpalicia brasiliana ) e foi sintetizado pela primeira vez pelos cientistas do Núcleo de Pesquisas de Produtos Naturais da UFRJ. Testes in vitro confirmaram sua eficácia: na presença do composto, as células musculares expostas ao veneno não sofreram nenhum dano, enquanto os tecidos desprotegidos tiveram suas células destruídas pela danificação de suas membranas — esse processo é irreversível e pode gerar lesões graves.

Em experiências com camundongos realizadas no Departamento de Farmacologia Básica e Clínica, os resultados também foram positivos: os animais tratados com a substância sobreviveram a uma dose de veneno que seria letal em condições normais. Os pesquisadores constataram ainda que as moléculas sintéticas são mais ativas que os soros antiofídicos disponíveis no Rio de Janeiro e em São Paulo.

“Outra vantagem do nosso produto é que ele não necessita de acondicionamento especial como os soros, que precisam ser conservados em geladeiras, nem sempre presentes nos locais onde mais ocorrem acidentes com cobras”, explica o coordenador da pesquisa, Paulo Roberto Ribeiro Costa. “Além disso, o novo medicamento não provoca as reações alérgicas freqüentemente desencadeadas pelos soros antiofídicos”, completa.

Até agora, segundo os pesquisadores do NPPN, os soros são os únicos medicamentos utilizados contra veneno de cobras. Sua administração, no entanto, esbarra em problemas como a dificuldade de identificar a espécie de cobra que atacou a vítima, já que existe um soro específico para cada uma. Essa é uma dificuldade que o grupo pretende resolver: “o novo composto atua de forma eficaz em diferentes espécies de cobras”, conta o farmacêutico Alcides José Monteiro da Silva, que preparou as moléculas sintéticas.

Os pesquisadores estimam que o medicamento ainda vai demorar, no mínimo, cinco anos para chegar às farmácias e postos de saúde. “Conhecendo a estrutura da substância, podemos preparar compostos com a mesma atividade a partir de materiais mais baratos, para viabilizar a produção em larga escala”, explica Paulo Costa.

A equipe da UFRJ ainda prepara uma quantidade maior do composto para testar sua toxicidade aguda em cobaias. “Como não é um medicamento para ser tomado o tempo todo, precisamos saber qual a maior dose que uma pessoa pode tomar sem sofrer nenhum tipo de efeito adverso”, acrescenta o pesquisador.

Catarina Chagas
Ciência Hoje On-line
29/06/04