Direitos garantidos?

Nos últimos 20 anos, os direitos das comunidades tradicionais em relação às florestas e seus recursos naturais vêm sendo cada vez mais reconhecidos. No entanto, nem sempre é possível exercê-los. Essa é a conclusão de um relatório divulgado hoje (30/5) pela organização civil RRI (sigla em inglês para Iniciativa para Direitos e Recursos).

O relatório analisa as leis nacionais relacionadas aos direitos de comunidades tradicionais sobre as florestas de 27 governos da América Latina, África e Ásia. Juntas, as nações estudadas abrigam 74% de todas as florestas dos países em desenvolvimento e têm 2,2 bilhões de pessoas vivendo em áreas rurais.

Em 27 países da América Latina, África e Ásia, a área de floresta sob controle de comunidades tradicionais aumentou de 21% para 31% de 1992 até hoje

O estudo mostra que a área de floresta sob o controle de comunidades tradicionais nesse grupo de países, que inclui o Brasil, aumentou de 21% para 31% de 1992 até hoje. Em nível global, essa porcentagem subiu de 10% para 15% no mesmo período.

Segundo a principal autora do estudo, a especialista em direito comparado e internacional Fernanda Almeida, essa tendência mundial teve início em decorrência da Eco 92, quando lideranças indígenas e comunitárias pressionaram os governos para terem garantidos seus direitos sobre a floresta por meio de legislação específica.

Nos países analisados, 86% dos regimes de regulamentação fundiária para garantir o acesso de comunidades tradicionais às florestas se estabeleceram depois de 1992. A maioria deles na América Latina, que é o continente em que essas populações são mais reconhecidas juridicamente.

O Brasil é o país em desenvolvimento que tem a maior variedade de regulamentação fundiária. São oito tipos de regimes de propriedade, uso e exploração da terra, entre assentamentos, reservas extrativistas, comunidades indígenas e outros.

Países em desenvolvimento
O mapa mostra as 27 nações analisadas no estudo, que juntas abrigam 74% das florestas de países em desenvolvimento no mundo. (imagem: RRI)

Em comparação com os países latino-americanos, África e Ásia estão em pior situação. A Indonésia, país asiático que abriga a maior área verde do continente, tem quatro tipos diferentes de regimes de uso das florestas por comunidades tradicionais, mas apenas 0,1% dessas áreas destina-se a essas populações.

Já o governo do Congo, mesmo tendo legislação que prevê o reconhecimento legal das comunidades tradicionais, reivindica a propriedade de todas as florestas e favorece concessões industriais em grande escala.

Distância entre teoria e prática

Apesar dos avanços na criação de leis, o estudo aponta que a implementação dos direitos das comunidades tradicionais ainda sofre com empecilhos como a burocracia e a complexidade dos processos de regulamentação fundiária, a inadequação das normas sobre o uso das florestas à realidade desses grupos e a falta de vontade política.

“As populações cada vez mais têm seus direitos reconhecidos, mas há muitas dificuldades para acessar esses direitos e muitas condições para exercê-los”, afirma Almeida.

No Brasil, por exemplo, cerca de 150 milhões de hectares de floresta são designados ao uso por comunidades tradicionais. “Por outro lado, para que essas populações tenham acesso aos seus direitos, precisam ser reconhecidas como uma entidade jurídica e cumprir uma série de procedimentos, como demarcação da área de ocupação pretendida e levantamento florestal, o que pode ser muito difícil para quem não tem escolaridade”, exemplifica.

Depois de cumprida essa etapa inicial, é preciso criar um plano de manejo da floresta, onde ficam estabelecidas normas sobre a exploração dos recursos naturais, tanto para subsistência quanto para eventual comercialização.

Muitas vezes, os planos de manejo aprovados pelas autoridades não levam em conta a realidade das populações

No entanto, muitas vezes, os planos aprovados pelas autoridades não levam em conta a realidade das populações, como exemplifica o engenheiro agrônomo Jorge Pinto, que há mais de 20 anos trabalha com comunidades tradicionais na Amazônia:

“O limite entre a comercialização e a subsistência, por exemplo, é muito tênue. Se alguém da comunidade produz dez sacos de farinha para uso e vende dois, na minha visão ele só está subsistindo, porque precisa do dinheiro para comprar coisas que ele não consegue na floresta. Mas, na prática, o gestor [responsável pela fiscalização] pode achar que é um desrespeito às normas.”

Outro obstáculo comum é a lentidão dos órgãos envolvidos no processo. Na região do vale do Ribeira, em São Paulo, o processo de legalização das terras de cerca de 50 comunidades quilombolas e 12 indígenas reconhecidas demorou mais de 14 anos para ser concluído.

Comunidade indígena
Comunidades indígenas do vale do Ribeira, em São Paulo, tiveram que esperar 14 anos para ter sua ocupação regularizada na floresta. (foto: Raquel Pasinato/ Instituto Socioambiental)

“Essa falta de segurança traz consequências não só sociais, mas também para o meio ambiente, porque quando a comunidade não tem certeza de que vai ter acesso aos recursos naturais, a predisposição de usar ao máximo é muito maior”, analisa Almeida.

Desafio econômico

O presidente do Serviço Florestal Brasileiro, Antônio Carlos Hummel, acredita que os avanços no Brasil superam as dificuldades. Segundo ele, a legislação e a burocracia não são impeditivas e o maior desafio hoje é fomentar a economia florestal.

O maior desafio hoje é fomentar a economia florestal

“Se o problema fosse excesso de burocracia ou leis inadequadas, não teríamos os avanços que temos hoje”, afirma. “No entanto, mais pode ser feito e, para isso, nosso foco deve estar em desenvolver políticas públicas que promovam a economia nas comunidades já regularizadas e deem valor aos produtos florestais.” Ele completa: “E isso só é possível com bons instrumentos de incentivo econômico às práticas florestais sustentáveis e ações de capacitação, assistência e organização dessas comunidades, para que seja uma boa opção continuar morando na floresta”.

Para Almeida, a regulamentação fundiária de comunidades tradicionais poderá ter um marco na próxima conferência da ONU para Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, que tem como um de seus carros-chefes justamente a chamada ‘economia verde’.

“Será uma oportunidade de manter essa trajetória de avanço de reconhecimento das comunidades florestais como importante instrumento de desenvolvimento sustentável”, afirma. “Cabe aos governos decidir seguir esse caminho e realmente implementar políticas que ajudem a vencer os desafios.”

Sofia Moutinho
Ciência Hoje On-line