Do céu ao inferno

Pacientes com transtorno bipolar, mesmo quando vivem um período em que não há sintomas de alteração de humor e as ações cotidianas são realizadas sem conflitos (estado eutímico), tendem a apresentar déficit em suas atividades executivas.

Essa tendência, já apontada por estudos internacionais, acaba de ser confirmada pela psicóloga Lilian Lopes Pereira em sua dissertação de mestrado, defendida no Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul.

“O tratamento, que inclui o uso de medicamentos e psicoterapia, é essencial para evitar crises e permitir que o paciente enfrente o dia a dia sem grandes conflitos”, diz Pereira. Mas, segundo a psicóloga, ele não evita que determinadas funções sejam afetadas.

O transtorno bipolar é uma causa bastante comum de incapacidade laboral entre adultos

O transtorno bipolar é uma doença mental crônica que se caracteriza por oscilações recorrentes de humor. Como apontam inúmeros trabalhos, a enfermidade é uma causa bastante comum de incapacidade laboral entre adultos.

As funções executivas têm relação com memória, cognição, atenção, organização, controle de impulsos, flexibilidade mental, tomada de decisões e outros fatores emocionais e de aprendizagem. “Se essas funções permanecem comprometidas, a vida social, familiar e ocupacional dos portadores da doença é afetada”, afirma Pereira.

Segundo a pesquisadora, não há consenso sobre as causas da persistência de déficit nas funções executivas de portadores de transtorno bipolar que aderem ao tratamento medicamentoso e cujo quadro emocional parece estável.

Para tentar encontrar uma resposta para a questão, deve-se, segundo ela, levar em conta diferentes fatores envolvidos no transtorno, como histórico familiar, medicamentos usados no tratamento e seus efeitos, idade do paciente, tempo de evolução e curso da doença. E, ainda, número de episódios maníacos com psicose (casos mais graves), que implicam internamento em hospitais psiquiátricos.

Metodologia

A pesquisa envolveu dois grupos. O primeiro reuniu 41 portadores de transtorno bipolar em estado eutímico, com perfil mais severo da doença (que inclui crises de depressão e mania, com probabilidade de apresentar surto psicótico). Todos os pacientes estavam em tratamento no Ambulatório de Transtornos do Humor do setor de psiquiatria da UFSM, que faz parte do hospital universitário da instituição.

Os 41 pacientes do segundo grupo (grupo-controle) eram voluntários que não apresentavam transtorno de humor diagnosticado nem tinham parentes de primeiro grau com a doença. Os indivíduos estudados nos dois grupos eram homens e mulheres com idade entre 25 e 60 anos.

Durante o estudo, foram usados três instrumentos de avaliação neuropsicológica. O Trail Making Test (conhecido em português como Teste das Trilhas) permite estimar a flexibilidade cognitiva e o controle executivo. Quanto aos aspectos executivos, avalia destreza motora, memória operacional, rastreamento visual e capacidade de manter o engajamento mental, entre outras habilidades.

O teste Stroop, que envolve conflito entre cores e palavras, avalia o controle inibitório, a atenção seletiva do cérebro e a forma como esse órgão realiza efetivamente os significados.

Teste Stroop
Teste Stroop de cores e leitura, empregado por profissionais de recursos humanos em processos seletivos de empresas. A análise dos resultados pode indicar déficit de funções executivas.

O último, denominado Wisconsin Card Sorting Test (Teste Wisconsin de Classificação de Cartas), avalia a capacidade de raciocínio abstrato e a habilidade de modificar estratégias cognitivas de acordo com mudanças de situações e no ambiente.

Déficit cognitivo

Os testes apontaram diferenças estatisticamente significativas entre os dois grupos. Em comparação com os indivíduos do grupo-controle, os portadores de transtorno bipolar apresentaram déficit no que diz respeito à flexibilidade cognitiva e ao controle inibitório.

Os portadores de transtorno bipolar apresentaram déficit no que diz respeito à flexibilidade cognitiva e ao controle inibitório

De acordo com a psicóloga da UFSM, o principal objetivo de seu estudo foi estabelecer novos parâmetros, capazes de contribuir para o tratamento de pacientes com transtorno bipolar.

A seu ver, a avaliação neuropsicológica desses pacientes pode ser uma estratégia inicial importante para o desenvolvimento de propostas terapêuticas capazes de amenizar os prejuízos cognitivos que os afetam.

Ela afirma que a aceitação da doença pelo paciente, a procura por tratamento logo que os primeiros sintomas se manifestam e o apoio que ele recebe de profissionais de saúde, médicos, familiares e amigos são essenciais para a eficácia terapêutica. “Em outras palavras”, resume, “a abordagem terapêutica deve ser mais abrangente”.

Está prevista para breve a realização de uma segunda etapa do estudo, em que os três testes serão aplicados em um grupo maior de indivíduos. O objetivo será investigar outras variáveis relacionadas com funções executivas coletadas pelos instrumentos de pesquisa e não analisadas no estudo.

Genética e ambiente

O diagnóstico de transtorno bipolar é difícil e pode levar anos para ser confirmado, já que muitas vezes a doença é confundida com depressão. Embora boa parte dos casos tenha origem genética, fatores ambientais podem servir de gatilho para desencadear o problema. “Ambiente familiar instável e situações estressantes vividas por pessoas com vulnerabilidade genética para o transtorno podem provocar uma crise”, afirma Pereira.

No Brasil, estima-se que de 1,5% a 3,0% da população sofra do distúrbio. De acordo com a psicóloga, se considerarmos formas mais brandas do transtorno, é possível classificar até sete tipos diferentes da doença. Se levarmos em conta esse amplo espectro, o percentual de casos de transtorno bipolar na população brasileira pode subir para 6%.

Katy Mary de Farias

Especial para a CH On-line/ PR