Do espaço para o gelo

Bert, Ernie e Big Bird. Os nomes são de personagens do programa de televisão dos anos 1970 Vila Sésamo, mas são também o apelido dos três neutrinos mais energéticos e talvez os primeiros a virem de fora da nossa galáxia já detectados. A descoberta do último deles, milhares de vezes mais energético que qualquer partícula acelerada no Grande Colisor de Hádrons (LHC, na sigla em inglês), foi anunciada por pesquisadores do experimento IceCube esta semana no 33º Congresso Internacional de Raios Cósmicos (ICRC), no Rio de Janeiro.

Neutrinos são partículas de carga neutra e massa extremamente pequena que interagem pouco com a matéria. Por causa dessa baixa interação, eles podem carregar informações do seu local de origem. A cada segundo, trilhões de neutrinos passam pela Terra (e por nós!), a maioria deles vinda do Sol ou produzida no momento em que raios cósmicos atingem nossa atmosfera. 

Os neutrinos detectados têm energia muito maior que qualquer outro neutrino observado até hoje – acima de um petaelétron-volt –, o que indica que eles vieram de muito mais longe, provavelmente de fora da Via Láctea. 

Os cientistas acreditam que os neutrinos tenham vindo de eventos astronômicos altamente energéticos, como o núcleo ativo de uma galáxia

Para detectar as partículas, os pesquisadores se valeram do IceCube, o maior detector de neutrinos do mundo, que fica na Antártica. Ele chama atenção por ter sido construído dentro do gelo do solo. Em um espaço escuro de 1 km3 (10 vezes o volume do Pão de Açúcar), a dois mil metros de profundidade da superfície, cinco mil sensores detectam as partículas, que quando passam pelo gelo translúcido produzem luz.

Os cientistas ainda não conseguiram identificar o ponto de origem dos neutrinos, mas acreditam que eles tenham vindo de eventos astronômicos altamente energéticos capazes de acelerá-los. A atual aposta é que sejam do núcleo de uma galáxia.

“Existem galáxias de núcleo ativo, que giram de modo semelhante a nossa Via Láctea e têm um buraco negro supermassivo no centro; esse buraco negro absorve algumas partículas e expele outras em um jato”, explica o líder da pesquisa, o astrofísico Spencer Klein. “A teoria mais provável é que os nossos neutrinos tenham vindo de um jato desses.”

Esquema IceCube
O maior detector de neutrinos do mundo funciona a 2 km abaixo da superfície do gelo do polo Sul. Clique na imagem para mais detalhes. (imagem: IceCube)

Até agora, os pesquisadores já detectaram 28 neutrinos superenergéticos que podem ter vindo de fora da Via Láctea. Assim que os pesquisadores determinarem a origem das partículas, poderão usá-las para entender melhor os eventos que as geraram. 

“Os neutrinos que vêm do Sol, por exemplo, são o único modo que temos hoje de estudar o centro desse astro”, explica Klein. “Do mesmo modo, os neutrinos cósmicos que estamos detectando são nossa melhor chance de saber o que há dentro desses grandes eventos capazes de acelerar raios cósmicos. Com os neutrinos, podemos entender os lugares mais energéticos do universo.”

Na saga da matéria escura

Os neutrinos detectados pelo IceCube também podem ajudar no esclarecimento de um dos maiores mistérios da astrofísica: a natureza da matéria escura. Acredita-se que ela constitui 25% do universo, mas nunca foi observada diretamente. Sua existência é inferida pela ação da sua gravidade sobre a matéria comum.

A detecção de neutrinos superenergéticos poderia ser uma detecção indireta da matéria escura

Os físicos hipotetizam que a matéria escura se acumula em certas regiões do universo, como o centro de galáxias e o Sol. Se isso ocorrer, a colisão de partículas de matéria escura entre si produziria neutrinos. Assim, a detecção de neutrinos superenergéticos poderia ser uma detecção indireta da matéria escura. 

Ainda é cedo para saber se algum dos neutrinos já detectados pelo IceCube teria origem na matéria escura. Mas Klein não descarta a possibilidade. “Se a matéria escura for pega pela gravitação do Sol, detectaremos os neutrinos produzidos. Estamos sempre atentos a tudo o que detectamos, pois neutrinos vindos do Sol, da Terra, da nossa galáxia ou de qualquer outro lugar podem ser um sinal de matéria escura.”

Sofia Moutinho
Ciência Hoje On-line