Do lixo ao luxo

 

A maior parte do material genético dos organismos eucarióticos (que possuem núcleos) não está envolvido na hereditariedade. Essas regiões, chamadas de não-codificantes – em contraste com aquelas que contêm informações para a síntese de proteínas –, chegaram a receber a alcunha de DNA ‘lixo’. É como se o material genético fosse um livro de muitas páginas, das quais apenas alguns parágrafos seriam inteligíveis. No entanto, um estudo publicado na edição de 20 de outubro da revista britânica Nature mostra que, longe de serem irrelevantes, as seqüências não-codificantes provavelmente possuem um papel significativo não só na manutenção do organismo, como também na sua evolução.
 
O estudo comparou 35 fragmentos codificantes com 153 do chamado DNA ‘lixo’, todos pertencentes à mosca-das-frutas ( Drosophila melanogaster ), por meio de uma nova técnica usada na genética das populações. Os resultados mostraram que a maior parte das seqüências não-codificantes evolui de maneira mais lenta do que outras regiões genéticas neutras, assim chamadas porque suas mutações não afetam o organismo. Essa diferença de velocidade sugere que o DNA ‘lixo’ sofre uma forte ação da seleção natural para que não sofra alterações em sua composição.
 
“Calculo que cerca de 40% a 70% das regiões não-codificantes, dependendo do tipo de seqüência, são conservadas”, conta em entrevista à CH On-line o autor do trabalho, o biólogo Peter Andolfatto, da Universidade da Califórnia em San Diego (EUA). Isso indicaria que esse DNA tem um papel importante para os organismos, pois a forte pressão seletiva manteria essas seqüências genética inalteradas, impedindo o comprometimento ou até a perda da função pela qual elas são responsáveis.
 
Andolfatto também mediu o efeito da seleção natural sobre a divergência do restante das seqüências não-codificantes da mosca-das-frutas em relação a uma espécie do mesmo gênero, a Drosophila simulans . Segundo ele, de 10% a 60% das diferenças encontradas entre os nucleotídeos (unidades formadoras do DNA) dos dois animais foi ‘fixada’ por pressão seletiva, o que sugere que elas conferem alguma vantagem ao organismo e, por isso, foram mantidas.
 
Embora já fosse sabido que algumas regiões não-codificantes têm funções de regulação genética, os achados do biólogo levam a crer que a contribuição do DNA ‘lixo’ é muito mais significativa, especialmente para a evolução. “Se tomarmos apenas um tipo dessas seqüências, veremos que ele é responsável por tantas diferenças adaptativas entre espécies quanto as alterações nas proteínas, consideradas a principal força por trás desse fenômeno”, observa Andolfatto. Ele acrescenta que, na totalidade, as regiões não-codificantes podem ser cinco vezes mais importantes para o processo.
 

O trabalho reforça a idéia que o DNA ‘lixo’ seria o responsável pelas diferenças entre espécies muito similares geneticamente, como o homem e o chimpanzé, pois as diferenças protéicas entre eles são muito pequenas para explicar as disparidades. Andolfatto pretende agora expandir sua pesquisa utilizando genomas inteiros. “Essa área está começando agora, ainda há muito trabalho para se fazer até entendermos como as seqüências não-codificantes regulam os genes”, conclui. 


Fred Furtado
Ciência Hoje On-line
31/10/05