Domínio da soja

No último leilão da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), finalizado no mês passado (26/5), o governo se comprometeu a comprar a quantidade recorde de 700 milhões de litros de biodiesel, no valor de 1,5 bilhão de reais.

Apesar do forte investimento do governo passado na produção de biodiesel a partir de culturas ligadas à agricultura familiar – como mamona, pinhão-manso e dendê –, a maior parte dessa produção tem como matéria-prima a soja, monocultura-símbolo do agronegócio.

Atualmente, existem 60 plantas autorizadas pela ANP para a produção de biodiesel. Mesmo com esse grande leque de possibilidades, 82% da produção nacional desse biocombustível provêm do óleo de soja, uma das matérias-primas mais caras desse mercado.

De acordo com dados da ANP, entre janeiro de 2004 e fevereiro de 2011, o preço do óleo de soja esteve em média 36% acima do valor do sebo bovino, segundo recurso mais usado na produção de biodiesel. Além disso, a soja é uma das plantas que menos rendem óleo – cerca de 400 kg por hectare –, 13 vezes menos do que o dendê, por exemplo.

O engenheiro agrônomo Amélio Dall’Agnol, pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), explica que esse grão se mantém como líder no mercado por ser uma cultura amplamente conhecida, que tem uma cadeia produtiva estabelecida e uma tecnologia agrícola já bem desenvolvida.

Tabela biodiesel
A tabela mostra a produtividade das principais plantas usadas na produção de biodiesel. (arte: Sofia Moutinho/ dados: ANP)

Outro fator decisivo para a manutenção do uso da soja na produção do biodiesel é a forte demanda do mercado internacional pelo seu farelo, usado como ração para gado, frango e porco. “Não se planta soja por causa do óleo, mas por causa do farelo”, afirma Dall’Agnol. “O óleo é apenas uma consequência que foi bem aproveitada pelos grandes produtores no Brasil.”

Além de ser cara e pouco eficiente na produção de óleo, a cultura da soja tem provocado um desmatamento indireto da Amazônia, principalmente no Mato Grosso, ao empurrar as criações de gado para dentro da mata.

Além de ser cara e pouco eficiente na produção de óleo, a cultura da soja tem provocado um desmatamento indireto da Amazônia

Um estudo conduzido em universidades dos Estados Unidos, publicado recentemente no periódico Environmental Research Letters, sugere que se a área ocupada pelas plantações de soja entre 2003 e 2008 tivesse sido 10% menor, o desmatamento registrado na Amazônia no mesmo período teria sido 40% menor.

Hoje, segundo dados da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), a soja ocupa 23,6 milhões de hectares do território brasileiro, o equivalente a 49% da área destinada ao plantio de grãos no país.

O economista Francisco Alves, pesquisador da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e especialista na questão do biodiesel, critica essa dinâmica: “O biodiesel é promovido como uma forma de melhorar as condições ambientais, eliminando os gases nocivos da queima do combustível fóssil, mas essa ideia tem que estar presente na cadeia produtiva como um todo, caso contrário, não faz sentido.”

Realmente social?

A produção de biodiesel, especialmente a partir da soja, esbarra ainda em questões sociais. Para incentivar a produção de pequenos produtores, o governo federal criou, em 2005, o Selo Combustível Social, concedido às indústrias de combustível vegetal que compram até 30% de sua matéria-prima da agricultura familiar.

A empresa com o selo, além de obter uma boa imagem no mercado, ganha vantagens tributárias e melhores condições de financiamento junto ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Hoje, a maior parte do biodiesel produzido no país é proveniente de empresas que desfrutam desses benefícios. Segundo a ANP, 96% de todo o biodiesel comprado no último leilão do governo serão fornecidos por empresas com o selo social.

Para Francisco Alves, no entanto, isso não quer dizer que os pequenos agricultores estejam sendo favorecidos. Segundo o pesquisador, esses agricultores não têm outras opções de mercado, ou seja, sua única alternativa é colaborar com o agronegócio e as grandes empresas produtoras de biodiesel.

Muitas empresas de biodiesel deixam de dar o apoio necessário aos pequenos agricultores e até os colocam em situações análogas à escravidão

Alves aponta ainda que, devido à falta de fiscalização, muitas empresas de biodiesel deixam de dar o apoio necessário aos pequenos agricultores e até os colocam em situações análogas à escravidão, quando estes não conseguem pagar o pré-financiamento recebido para cobrir os gastos com sementes, adubos e fertilizantes.

“Esse selo social não é tão social assim. O que acontece hoje é que os pequenos produtores familiares são assentados, cercados por grandes latifundiários por todos os lados e, sem alternativa de mercado, muitas vezes acabam em situação de escravidão”, argumenta.

Alternativas à soja

Dendê
O dendê é a oleaginosa que mais rende óleo por área plantada, cerca de 5 mil kg por hectare, treze vezes mais que a soja. (foto: Agência de Notícias do Acre/ CC BY 2.0)

Já o engenheiro agrônomo Dall’ Agnol acredita que o sistema do selo social pode dar certo se houver mais fiscalização do governo federal e apoio das empresas aos pequenos produtores.

O pesquisador aposta no cultivo do dendê, que tem recebido grandes investimentos da Biopalma, empresa produtora de óleo de palma da Amazônia recém-adquirida pela Vale, que produzirá biodiesel no Pará, a partir de 2013.

Além de produzir mais óleo, o plantio da palmeira de dendê é mais sustentável

“Produtores individuais só podem produzir se forem apoiados pelas indústrias, pois o dendê tem uma colheita demorada que não pode ser bancada pela agricultura familiar”, afirma. “A saída é as empresas bancarem o produtor com um salário enquanto ele espera pela colheita para depois comprarem o dendê com o selo de combustível social.”

Além de produzir mais óleo, o plantio da palmeira de dendê é mais sustentável porque só é feito uma vez e pode ser conciliado com outras atividades, como a pecuária.

Pinhão manso
O pinhão-manso (‘Jatropha curcas’), planta típica do Nordeste, produz cerca de quatro vezes mais óleo por hectare plantado do que a soja. (foto: Ton Rulkens/ CC BY-SA 2.0)

Já para Alves, uma alternativa mais benéfica para todos seria o investimento na cultura do pinhão-manso, que produz cerca de quatro vezes mais óleo do que a soja e já é conhecida por muitos agricultores, principalmente no Nordeste do país.

“O pinhão-manso já é amplamente difundido nos fundos de quintais”, explica. “Mas até hoje ele não foi amansado, pois não há interesse em desenvolver pesquisa sobre um produto de pobre usado por pobres”, critica.

Sofia Moutinho
Ciência Hoje On-line