Enchentes violentas isolaram ilhas britânicas

Foto de satélite do Canal da Mancha, entre a Grã-Bretanha e o resto da Europa, com 560 km de extensão. Em seu ponto mais estreito, apenas 34 km separam a Inglaterra da França; no ponto mais largo, são 240 km (foto: Nasa).

Duas enchentes de proporções gigantescas, que estão entre as maiores da história geológica da Terra, foram responsáveis por separar as ilhas britânicas do continente europeu, entre 450 e 200 mil anos atrás. Após analisar imagens de alta resolução do relevo submerso do Canal da Mancha, cientistas britânicos identificaram vestígios desses eventos que ajudaram a definir os contornos atuais da Europa.

A hipótese de que grandes enchentes levaram à formação do Canal da Mancha já tinha sido proposta antes, mas não havia até aqui indícios capazes de confirmá-la. Uma prova convincente acaba de ser obtida graças a um sonar de alta resolução, que captou imagens com um detalhamento sem precedentes do relevo de um pequeno trecho do fundo do Canal da Mancha.

As imagens foram analisadas pela equipe do geólogo Sanjeev Gupta, do Imperial College, em Londres. Os resultados, publicados esta semana na revista Nature , revelam um vale gigantesco no fundo do Canal da Mancha, com dezenas de quilômetros de largura e 50 metros de profundidade. Os cientistas mostraram que esse vale não poderia ter sido criado pela erosão das rochas pela passagem de um rio, mas apenas por fluxos violentos de água em dois diferentes eventos.

Há 450 mil anos, a Terra passava por uma era glacial e o nível dos mares estava dezenas de metros abaixo do atual. A região onde hoje fica o Mar do Norte era então um imenso lago, no qual desaguavam boa parte dos rios da Europa ocidental (veja o mapa abaixo). Esse lago era limitado ao norte por geleiras e, ao sul, por uma formação montanhosa que ligava o sudeste da Inglaterra ao norte da França.

Ruptura

O mapa mostra o continente europeu há cerca de 450 mil anos, durante uma era glacial, quando as ilhas britânicas eram conectadas por terra ao resto do continente europeu. O Mar do Norte era então um imenso lago, cujas águas romperam uma formação montanhosa que unia o sudeste da Inglaterra ao norte da França (representada em vermelho), formando assim o vale onde hoje se situa o Canal da Mancha (arte: S. Gupta e A. Whitchurch).

Em algum momento, as águas desse lago foram subindo até que romperam essa formação montanhosa no ponto do atual estreito de Dover, na região em que a Inglaterra e a França estão mais próximas hoje. Seguiu-se uma violenta inundação, na qual um grande volume de água armazenada no lago inundou o atual Canal da Mancha, formando um imenso vale, cujos padrões foram observados pelo sonar. As imagens revelaram ainda indícios de uma segunda enchente, de proporções um pouco menores, que teria acontecido cerca de 200 mil anos depois, aprofundando o vale formado anteriormente.

“Estimamos que, no caso da primeira enchente, a vazão máxima tenha sido da ordem de um milhão de metros cúbicos por segundo, o que equivale aproximadamente a dez vezes a vazão do rio Amazonas”, conta Sanjeev Gupta à CH On-line . “No caso da segunda enchente, a vazão atingiu entre 0,2 e 0,4 milhão de m 3 /s. Mas estas são apenas estimativas aproximadas.”

Esses eventos redesenharam a dinâmica dos rios do noroeste europeu. A região do Canal da Mancha tornou-se então um caudaloso curso d’água, que os pesquisadores batizaram de Rio do Canal. Desde então, nos períodos interglaciais, como o que vivemos atualmente, o nível dos mares aumenta e a Grã-Bretanha fica separada do continente pelo Canal da Mancha. Durante as glaciações, um grande volume de água fica armazenado em geleiras, o nível dos oceanos baixa e o Rio do Canal volta a aparecer, conduzindo as águas do noroeste da Europa para o Atlântico. Esse padrão ocorreu pela última vez na era glacial mais recente, encerrada há 12 mil anos.

Ocupação humana
As enchentes tiveram um possível impacto significativo sobre o padrão de ocupação humana das ilhas britânicas. “Não há registros da existência de hominídeos vivendo na Grã-Bretanha entre 180 mil e 60 mil anos atrás”, conta Gupta. “Especulamos que os obstáculos criados com a inundação do Estreito de Dover teriam tornado a travessia dos hominídeos difícil, senão impossível.”

Os autores acreditam ainda que as inundações podem ter tido um efeito importante sobre o clima do planeta. O despejo no oceano Atlântico do grande volume de água armazenada no lago pode ter levado a um resfriamento abrupto do planeta, especulam eles.

Novas análises do relevo submarino do Canal da Mancha, que a equipe de Gupta pretende realizar no futuro, podem ajudar a confirmar essas hipóteses e a determinar com mais precisão a data exata em que ocorreram as enchentes. “Temos dados referentes apenas a uma pequena porção do Canal da Mancha. Analisá-la é como explorar um novo planeta pela primeira vez”, compara o geólogo. “Quem sabe que mistérios repousam nessas paisagens submarinas?”

Bernardo Esteves
Ciência Hoje On-line
18/07/2007