Escola do crime


Espancamento, humilhação, proliferação de doenças e superlotação. Esses são alguns dos problemas enfrentados por jovens detidos em casas de custódia no Brasil – muitos dos quais nem deveriam estar lá. Tal panorama de tortura e maus tratos, que surpreende até quem acompanha o noticiário local, foi relatado em artigo publicado recentemente na The Lancet – uma das mais conceituadas revistas médicas internacionais –, pela Human Rights Watch (HRW), uma ONG internacional que luta pelos direitos humanos.

O quadro de maus tratos surpreende pelo fato de o Brasil ter, desde 1990, uma das mais progressivas leis juvenis da América Latina. “O Estatuto da Criança e do Adolescente é eficiente, inclusive vai além do que a ONU recomendou, porém os juízes não obedecem às leis ou aplicam as regras antigas”, denuncia Fernando Delgado, especialista em justiça juvenil da HRW e co-autor do artigo.

O artigo apresenta uma pesquisa feita em 2005 no Rio de Janeiro sobre a situação de 800 detidos. As irregularidades já surgiam no motivo de detenção: 148 desses jovens tinham cometido crimes leves, uma situação ilegal de acordo com o estatuto. Pela lei, o sistema sócio-educativo só deve ser indicado como um último recurso. O infrator deve ter cometido crimes graves com uso de violência, como assassinato ou estupro, ou ser reincidente. “Há um caso de uma jovem que foi detida por desacato”, exemplifica Delgado.

Além de ilegítimo, o aprisionamento indevido colabora para o problema da superlotação desses centros de custódia. De acordo com Rute Salles, fundadora da ONG Moleque, formada por mães de adolescentes em conflito com a lei, esse é um dos motivos que tornam as casas de detenção locais subumanos. “São piores do que as cadeias comuns. Devido à lotação, há epidemias de sarna e de outras doenças”.

Bater sem deixar marcas
Porém, a lotação não é o principal problema enfrentado por esses jovens. Sales, cujo filho foi detido duas vezes, afirma que os agentes penitenciários torturam os meninos esporadicamente. “Eles os espancam, cospem em seus pratos e ameaçam as famílias para evitar denúncias de maus tratos.” Delgado complementa: “Eles sabem onde bater para não deixar marcas. Os agentes proíbem os meninos de levantar as camisas durante as visitas, para que ninguém fique sabendo”.

No artigo, os pesquisadores também revelam que guardas do Instituto Padre Severino (RJ) utilizavam freqüentemente um pedaço de madeira, apelidado de ‘Kelly Key’, para bater nos menores. Ainda segundo eles, em alguns centros de detenção os menores eram obrigados a urinar e defecar em sacos, já que os agentes penitenciários não permitiam que os internos saíssem de suas celas para ir a banheiro.

Segundo Salles, essas instituições realizam o trabalho inverso que lhes é proposto. “Em vez de mostrar aos jovens um caminho diferente, esses locais funcionam como uma escola do crime, transformando a cabeça dos internos para pior. Por isso que o número de reincidentes é enorme.”

A fundadora da ONG Moleque conhece bem essa situação: após uma passagem pelo sistema sócio-educacional, seu filho voltou para o crime e foi novamente detido. Maior de idade, entrou no sistema penal. “Eles mudaram meu filho. Depois que foi detido pela primeira vez, ele voltou outra pessoa”, lamenta.

Medo de rebeliões
Para Delgado, os agentes penitenciários não são os principais culpados por esta situação. “Eles recebem um péssimo treinamento e estão quase sempre em pequeno número. Certa vez, guardas de uma casa de custódia tiveram que trancar 300 internos 24 horas por dia, durante alguns dias, já que apenas cinco cuidavam da segurança em cada turno. Eles tinham medo de rebeliões.”

A resolução do problema parece complexa, mas as denúncias têm tido repercussão nos centros de detenção de menores, segundo o relato de Rute. “Os agentes estão com medo. Os maus tratos continuam, mas são mais escondidos”. Para Delgado, a união dos centros e ONGs de defesa dos jovens e de suas famílias é o ponto chave. “O entrosamento dos centros com as famílias é fundamental para criar um órgão mais legitimo e motivado”, disse.

A HRW inspecionou 23 centros de detenção juvenil no Brasil. De acordo com a organização, muitos deles não oferecem qualquer tipo de ensino aos internos. Em 2005, dois centros no Rio de Janeiro suspenderam as aulas do ensino fundamental e médio por falta de profissionais. Procurado pela CH On-line , o Departamento de Ações Sócio-educativas (Degase), órgão responsável pelo sistema de detenção de menores no Rio de Janeiro, não se manifestou sobre as acusações feitas no relatório da HRW.

Júlio Molica
Ciência Hoje On-line
10/04/2006