Faca de dois gumes

 

Uma variante de um gene que conferia a seus portadores resistência a uma forma de malária aumenta em 40% as chances de que eles sejam infectados pelo HIV, o vírus causador da Aids. No entanto, uma vez infectados, esses indivíduos têm uma progressão mais lenta da doença e vivem em média dois anos a mais. A descoberta foi feita por pesquisadores do Texas, nos Estados Unidos, e publicada na revista científica Cell Host & Microbe.

O gene em questão é responsável pelo receptor de antígeno Duffy para quimiocinas (Darc, na sigla em inglês), uma molécula presente nas membranas principalmente das células vermelhas do sangue. Encontrada majoritariamente em afro-descendentes, a variante desse gene (ou alelo) estudada pelos pesquisadores (Darc-) foi selecionada há milhares de anos na África, pois conferia resistência a uma forma de malária.

A imagem de microscopia eletronica colorizada por computador mostra o HIV atacando um linfócito cultivado em laboratório (foto: CDC / C. Goldsmith, P. Feorino, E. L. Palmer, W. R. McManus).

O receptor se liga ao plasmódio (protozoário causador da doença) e permite sua entrada na célula. Como os portadores do alelo Darc- não têm essa molécula, são resistentes à infecção. Hoje, eles têm resistência à versão da doença causada pelo Plasmodium vivax.

A conclusão veio de estudos com um grande grupo da Força Aérea americana, incluindo 1.200 indivíduos soropositivos que são acompanhados há 22 anos. Segundo os pesquisadores, se os resultados fossem extrapolados para a população africana, a estimativa é que esse alelo seria responsável por 11% da epidemia de Aids no continente.

“Mas essa é uma estimativa matemática apenas”, explica à CH On-line um dos coordenadores do trabalho, o médico Sunil K. Ahuna, do Centro de Ciência da Saúde da Universidade do Texas. “Para confirmá-la, seria necessário analisar os dados da população africana.”

Darc e HIV
Os receptores Darc são capazes de se ligar a uma série de substâncias chamadas quimiocinas, que atuam em processos inflamatórios, e de regular seus níveis no plasma sangüíneo. Um exemplo é a CCL5, que também é eficaz para suprimir a replicação do vírus. Esses receptores também se ligam ao HIV, permitindo que o vírus entre em contato com os linfócitos T – seu principal alvo – e os infecte.

Os pesquisadores ainda não estão certos quanto ao mecanismo pelo qual os portadores do alelo Darc- estariam mais suscetíveis ao HIV. A hipótese é que, em indivíduos Darc+, há uma abundância de quimiocinas que competem pelo receptor com o vírus. Como o HIV está em menor quantidade e há um grande efeito de supressão da CCL5, é mais difícil que essas pessoas sejam infectadas.

Já nos indivíduos Darc-, o volume de quimiocinas é bem menor, o que permite que o HIV se desenvolva mais facilmente. Após a infecção, o número de partículas virais no organismo é bem maior. No entanto, como não há receptores Darc para se ligar ao vírus e levá-lo aos linfócitos, a progressão da doença é mais lenta.

Para o geneticista Sergio Danilo Pena, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e colunista da CH On-line, esse é um exemplo dos ‘efeitos colaterais’ da evolução. “Um traço pode ser selecionado por uma razão, mas vai influenciar outros sistemas fisiológicos”, afirma. “Também com relação ao HIV, acredita-se que um outro alelo protetor, o CCR5-delta32 tenha aumentado de freqüência na Europa porque dava proteção contra a peste bubônica”, lembra ele.

Pena destaca que, em diferentes populações, foram selecionadas variações nos genes dos sistemas enzimáticos responsáveis pela solubilidade e pela excreção dos elementos tóxicos presentes na dieta daquela região geográfica. “Essas variantes estão hoje em dia sendo detectadas como polimorfismos farmacogenéticos, já que o nosso corpo usa os mesmos sistemas enzimáticos para metabolizar medicamentos”, completa.


Fred Furtado
Especial para a CH On-line
22/07/2008