Grilhões na produção científica latino-americana

Aquecimento global, fontes renováveis de energia, lixo nuclear, desvio de cursos d’água, células-tronco… Nos debates públicos sobre os temas mais cruciais de nosso tempo, ciência e tecnologia têm papel decisivo. Os cientistas, longe de ficar confinados na torre de marfim da academia, não são mais os únicos protagonistas dos debates que eles próprios levantam. Para ampliar essa discussão, a Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) organizou, em Curitiba, o III Seminário Nacional de Tecnologia e Sociedade. “Não podemos deixar de refletir sobre as tecnologias, já que elas norteiam a transformação social permanentemente”, disse a organizadora do evento, Nanci Stancki Silva, da UTFPR.

Um dos coordenadores da Rede de Pesquisa Latino-americana sobre Tecnologia Social, o historiador argentino Hernán Thomas, da Universidad Nacional de Quilmes (Argentina), criticou a tendência atual de supervalorização dos artigos científicos publicados nos grandes periódicos internacionais, em detrimento de veículos regionais, e o consequente isolamento das comunidades científicas de países periféricos, como os da América Latina.

Hernán Thomas
Hernán Thomas, professor da Universidad Nacional de Quilmes (Argentina) e um dos coordenadores da Rede de Pesquisa Latino-americana sobre Tecnologia Social. Em conferência no III Seminário Nacional de Tecnologia e Sociedade, o historiador argentino criticou a tendência atual de supervalorização de artigos científicos publicados em grandes periódicos internacionais, em detrimento de veículos regionais (foto: divulgação UTFPR).

“Nossos pesquisadores se alinham com agendas formuladas em outra região; por isso produzem com frequência conhecimento que não atende necessidades locais, o que acaba por gerar uma oferta sem demanda, uma produção sem interação”, defendeu. “Até agora a produção científica serviu mais para aumentar a visibilidade dos pesquisadores do que para gerar conhecimento útil localmente.”

Thomas considera que o fenômeno é fruto da necessidade dos pesquisadores de conquistar espaço institucional capaz de garantir bom currículo e reconhecimento dos colegas. “Isso tem um efeito colateral no mercado: a demanda empresarial se descola do conhecimento gerado localmente”, disse o cientista argentino. “Importar tecnologia acaba tendo mais sentido do que desenvolvê-la localmente.”

Renato Peixoto Dagnino, do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Universidade Estadual de Campinas, manifestou opinião semelhante. Segundo ele, boa parte das pesquisas brasileiras é feita por multinacionais de diversas áreas que, quando querem inovar, vão buscar conhecimento no exterior. “Por isso”, segundo ele, “costuma-se dizer que nossas universidades não se preocupam com ciência aplicada”.

Mesmo em questões mais universais da ciência, como no caso do tratamento e da cura do câncer, o pesquisador argentino é enfático: “Por que não valorizar o chá da vovó? Antes os remédios eram chás. Agora, grande parte dos pesquisadores ignora esse conhecimento. Em vez de estudar e copiar remédios produzidos no Norte, por que não investigamos as plantas do Sul, que têm grande potencial?”. Mas ele esclareceu que não defende que se ignore o conhecimento produzido na Europa e nos Estados Unidos. “Apenas advogo a favor de uma ciência mais local, mais humana e menos centrada na vaidade.”

Especialistas e leigos

Michel Callon
Michel Callon, da École des Mines de Paris. Ao citar organizações de pacientes que se envolvem de modo ativo com pesquisas básicas e clínicas e com inovações técnicas, o pesquisador francês pôs em xeque os conceitos de ‘leigo’ e ‘especialista’ (foto: Ivan da Costa Marques).

A concepção dos termos ‘leigo’ e ‘especialista’ também foi objeto de debate durante o seminário. “Devemos nos livrar de ambos e ficar com o termo ‘pesquisador’”, sugeriu o engenheiro, economista e sociólogo francês Michel Callon. Professor da École des Mines de Paris (destacado centro de formação de engenheiros da Europa) e membro do Centre de Sociologie de I’Innovation de l’École Nationale Supérieure des Mines, Callon é responsável, juntamente com Bruno Latour e John Law, pelo desenvolvimento de uma controvertida abordagem das ciências sociais conhecida como Teoria do Ator-Rede.

De acordo com os defensores dessa teoria, não existem relações sociais puras. O que há de fato são interações constantes entre atores humanos e não-humanos (tecnologias), que configuram as ações humanas. “A única sociedade com relações sociais puras é a de babuínos”, brincou o cientista francês.

Callon afirmou que exemplos de situações que põem em xeque as concepções de ‘leigo’ e ‘especialista’ são abundantes nas áreas de saúde e meio ambiente. Segundo ele, algumas organizações de pacientes se envolvem fortemente com pesquisas básicas e clínicas e com inovações técnicas. “Certos pacientes comportam-se como verdadeiros pesquisadores-investigadores, os chamados ‘researchers in the wild’ (algo como ‘pesquisadores naturais’)”, explicou.

“Eles tecem densas redes de colaboração com pesquisadores profissionais e com gente da área da saúde”, disse Callon. Entre os inúmeros exemplos, há a Associação de doentes com Miopatia Nemalínica (doença neurológica responsável pelo enfraquecimento dos músculos), que criou em 1999 a primeira página não médica da internet sobre o tema e lançou em 2006 um livro sobre a doença; e a Sociedade Norte-americana para o Câncer, que possui 3.400 escritórios espalhados pelos EUA, auxiliando nas pesquisas sobre o assunto.

Surgem assim comunidades de pesquisa e inovação de que participam especialistas e pacientes. “Estes são, inquestionavelmente, especialistas leigos”, afirmou. “Se alguém se interessa por um assunto e o estuda, aos poucos se transforma em expert em condições de participar das discussões.”

Mercado de carbono

Chaminé de fábrica
Chaminé de uma fábrica perto de Springfield, em Illinois, Estados Unidos. Um dos maiores poluidores do planeta, os Estados Unidos não participam do mercado de carbono, o que, segundo especialistas, invalida o papel desse mercado nos esforços para deter o aquecimento global (foto: Brent Danley).

Michel Callon fez severas críticas ao mercado de carbono europeu – o maior do mundo –, estimado em US$126 bilhões em 2008. Trata-se de um sistema de troca de créditos de carbono (por convenção, 1 tonelada de CO2 = 1 crédito de carbono) no qual cada país tem um limite de emissões, que é dividido entre suas indústrias. Se uma empresa polui menos, sobram créditos para comercialização com companhias que extrapolam o limite. As indústrias também podem ganhar créditos caso ajudem países em desenvolvimento a reduzir emissões com projetos de instalação de tecnologias limpas ou de reflorestamento de áreas degradadas.

“Esse sistema de comercialização, em vez de reduzir as emissões, acaba apenas por gerar renda extra para empresas”, disse Callon, que criticou ainda a limitação desse mercado, que, além de não incluir os Estados Unidos e países em desenvolvimento, não leva em conta as emissões produzidas por meios de transporte (de carros a aviões). Muitos pesquisadores consideram que o sistema só ajuda a sustentar o negócio dos combustíveis fósseis sem trazer qualquer tipo de redução das emissões, como alerta relatório da World Wildlife Fund.

O sistema é tão complexo que um relatório do Banco Mundial afirma que a União Europeia (UE) sequer sabe o número exato de créditos em circulação. “As decisões são tomadas por alguns políticos e chanceladas por uns poucos técnicos, sem qualquer debate”, disse Callon. “Para encontrar novas soluções, a UE deveria estar aberta às críticas de outros países.”

O pesquisador francês lembrou que a ideia desse tipo de mercado surgiu há três décadas. “Primeiro para controlar emissões de substâncias como o dióxido de enxofre, que contribui para a formação de chuva ácida”, explicou. “Tendo alcançado sucesso, a inovação foi transposta para outro contexto: nos anos 90, algumas indústrias de petróleo organizaram mercados de carbono internos para controlar emissões de CO2.” Depois, a UE decidiu criar oficialmente o mercado de carbono.

Para o pesquisador francês Michel Callon, o mercado de carbono é uma medida falida

Callon sustenta que o mercado de carbono é uma medida falida e sugere outros tipos de intervenção. A propósito, citou o economista inglês Nicholas Stern, autor de um relatório que aponta diferentes ferramentas potencialmente capazes de prevenir o aquecimento global. Para Stern, “esse mercado não é a melhor solução para reduzir as emissões; é apenas uma delas”. Segundo ele, outras opções podem ser adotadas paralelamente, como a fixação de preço mínimo para o CO2 emitido, o que levaria as empresar a lucrar menos nesse mercado e a reduzir de fato as emissões.

Para criar perspectivas capazes de mitigar os impactos negativos do aquecimento global, Callon sugere a criação de organismos para esclarecer a sociedade sobre o problema e propor mudanças nas regras do jogo. “O tema ‘mercado de carbono’ se tornou um monopólio de experts e temo que os economistas sejam os únicos a ser levados em conta nas futuras tomadas de decisões”, destacou. Em 2013, começará a nova fase do mercado de carbono na Europa, mas todos os detalhes que o nortearão dependem dos acordos a serem firmados entre os países de todo o mundo.

Para romper o paradigma de um mercado artificial, que apenas formaliza a poluição, é preciso, na opinião do cientista francês, questionar, analisar, experimentar, envolver-se e pressionar. “A reconfiguração da sociedade se dará a partir da ação dos grupos de questionamento”, concluiu Callon.

 

Luan Galani
Especial para a CH On-line / PR