IPCC: do clima econômico à insegurança alimentar

Ele outra vez: o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) entra em cena e divulga mais um relatório. O lançamento do documento ‘Mudanças climáticas 2014: impactos, adaptação e vulnerabilidade’ – cujo rascunho vinha sendo elaborado há quatro anos – aconteceu nesta segunda-feira (31/03), em Yokohama, no Japão.

A novidade é que… Bem, aparentemente não há nada de tão novo nesse relatório. O enredo de sempre – já contado e recontado em documentos anteriores do IPCC – permanece pouco alterado.

Previsões de aumento na frequência e intensidade de eventos climáticos extremos insistem em se reafirmar. “Pode crescer o número de mortes causadas por desastres naturais; a poluição atmosférica deve se agravar em zonas urbanas; regiões mais pobres possivelmente enfrentarão quadros mais severos de insegurança alimentar, decorrentes das mudanças nos padrões de chuva e das consequentes perdas de produção agrícola; e, além disso, doenças transmissíveis podem ter seu padrão de distribuição alterado ou expandido”, sintetiza o médico Ulisses Confalonieri, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), membro do IPCC e revisor do capítulo que trata dos impactos na saúde esperados a partir das alterações climáticas.

Confalonieri: “No quesito saúde, talvez o único tópico relativamente novo seja a discussão das questões de exposição ocupacional ao calor”

Segundo Confalonieri, também é provável o recrudescimento de tensões socioeconômicas e desequilíbrios sociais por conta da migração de populações afetadas pelas mudanças do clima. “Eu diria que pouco mudou; apenas somam-se mais evidências que reforçam os cenários já mencionados anteriormente pelo IPCC”, completa.

“No quesito saúde, talvez o único tópico relativamente novo seja a discussão das questões de exposição ocupacional ao calor”, comenta o pesquisador. Há um bom número de pessoas que trabalham ao ar livre e estão diretamente expostas ao sol – seja na agricultura, na construção civil ou em qualquer outro segmento. “Há lugares em que se espera um aquecimento médio entre 3 e 4 ºC; nesses casos, a saúde dos trabalhadores será afetada.”

Tal cenário, aliás, pode ser a gênese de prejuízos econômicos outrora não considerados. “Novas jornadas de trabalho deverão ser propostas de modo a evitar exposição ocupacional ao calor durante os horários de pico de insolação”, visualiza Confalonieri.

Por falar em trabalho, o relatório projeta uma redução do Produto Interno Bruto (PIB) global entre 0,2% e 2% ao ano devido à variabilidade climática do planeta – caso as temperaturas aumentem em até 2 ºC ao longo das próximas décadas.

Insegurança alimentar

Segundo alguns cenários propostos no novo relatório do IPCC, safras de milho, arroz e trigo podem sofrer quedas da ordem de 25% até 2050. O dado é preocupante. “Especialmente se levarmos em conta que, de acordo com algumas estimativas, o crescimento populacional demandará aumentarmos em 70% a produção de alimentos no mundo até 2040”, alerta o biólogo Marcos Buckeridge, pesquisador do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), membro do IPCC e autor do capítulo referente às Américas do Sul e Central.

Mapa de impactos das mudanças climáticas
Mapa mostra os principais impactos esperados para as próximas décadas diante das alterações climáticas visionadas pelo IPCC. Clique para ampliá-lo. (imagem: Divulgação).

A propósito, uma curiosa discussão acontece nos bastidores das ciências biológicas. Tradicionalmente, ao dióxido de carbono (CO2) é reputado papel de grande vilão climático de nossa era. E não é para menos. Segundo a maior parte da comunidade científica, é clara a relação entre a emissão desse gás-estufa e o aumento da temperatura do sistema climático do planeta.

Mas há um intrigante detalhe: tudo indica que o CO2 exerce, também, um papel benéfico para o desenvolvimento de espécies vegetais – notadamente, ele favorece o crescimento das plantas. “Muitos trabalhos científicos já demonstram isso”, lembra Buckeridge. “O CO2 tem, realmente, um efeito benéfico sobre muitas plantas; mas à custa da diminuição do teor de proteínas”, ressalva o biólogo.

Ele explica que, quando as plantas crescem em ambientes com altos teores de CO2, elas apresentam diminuição média de 7% nos níveis de proteína. Entretanto, observa-se que tais plantas são capazes de tolerar melhor o excesso ou a falta de água – condições esperadas caso se concretizem os cenários vislumbrados pelo IPCC.

Buckeridge: “O CO2 passa a se tornar problemático a partir do momento em que atinge níveis capazes de aumentar consideravelmente a temperatura de modo a interferir na frequência de eventos extremos”

Estaria o gás, portanto, a exercer papel de vilão e mocinho? “Gradativamente, é o que estamos observando, mas essa dinâmica pode variar conforme a espécie; ainda precisamos de mais estudos para melhor compreender a questão”, confessa Buckeridge, lembrando que esse é um tópico marginal não referido no relatório do IPCC divulgado nesta segunda-feira.

“Um teor de CO2 ligeiramente mais alto, em uma temperatura global aumentada em talvez 1 ou 2 ºC, pode quem sabe beneficiar a agricultura ao longo das próximas décadas; seria um ótimo negócio para os russos, por exemplo, que aumentariam sua área agricultável”, pondera o biólogo da USP. “No entanto, acredito que o CO2 passa a se tornar problemático a partir do momento em que atinge níveis capazes de aumentar consideravelmente a temperatura de modo a interferir na frequência de eventos extremos, que são, de fato, bastante maléficos.”

As mui almejadas políticas de redução de emissões de CO2 ainda permanecem como itens fundamentais na agenda do IPCC.

Água: sistema em crise

Naturalmente, a água também é um dos temas mais caros à comunidade científica e ao IPCC. “O aumento da frequência de eventos extremos pode comprometer a disponibilidade de água potável, o que pode prejudicar não só a agricultura como também sistemas de geração de energia hidrelétrica”, destaca Buckeridge.

Rio
O novo relatório do IPCC destaca que o aumento da frequência de eventos extremos pode comprometer a disponibilidade de água potável e prejudicar não só a agricultura como também sistemas de geração de energia hidrelétrica. (foto: Kimberly Appelcline/ Sxc.hu)

Acerca disso, o engenheiro Jean Ometto, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), tem algo a dizer. “Em algumas regiões da América do Sul, inclusive no Brasil, há sérias possibilidades de redução na precipitação e no aumento da evapotranspiração, que é a perda de água das plantas e do solo para a atmosfera”, diz ele, também membro do IPCC. “Isso poderá reduzir a disponibilidade hídrica no continente.”

Permeia a discussão um notório agravante: com o galopante crescimento populacional e o aumento da desigualdade socioeconômica no planeta, mais locais inapropriados – como margens de rios, encostas e áreas naturalmente vulneráveis – são ocupados à exaustão. Nesse cenário, é pertinente uma dúvida: será que a essência dos impactos discutidos pelo IPCC não é também de natureza político-social, em vez de exclusivamente climática? Para a maioria dos cientistas, outra parcela de culpa cabe à má gestão de políticas públicas de prevenção de riscos.

“Na realidade, os problemas e os riscos não são desacoplados”, afirma Ometto. “Em uma situação em que a infraestrutura básica é ruim, em que a população vive em condições inadequadas, com baixos níveis de educação, habitando locais inapropriados, a vulnerabilidade aos riscos das mudanças no clima é maior.” Para ele, os desafios futuros – produção de alimentos, saúde pública, uso racional dos recursos naturais – “devem ser enfrentados com sapiência por uma sociedade mais igualitária”.

IPCC para leigos

Ao contrário do que muitos pensam, os cientistas que integram o IPCC não são cavaleiros do apocalipse. Eles apenas conduzem, de tempos em tempos, as mais completas revisões de literatura sobre temas tangentes à variabilidade climática do planeta. São esforços quase homéricos: centenas de pesquisadores, de numerosos países, compilam e analisam milhares de artigos científicos recentes dedicados a elucidar os mecanismos que regem a dinâmica de nosso sistema climático. “O IPCC tem uma base científica muito poderosa”, diz Buckeridge.

Marengo: “Nenhum país tentou ‘atrapalhar’ os debates; todos colaboraram e os delegados mostraram preocupações reais quanto aos impactos das mudanças do clima”

Aos que estão ligeiramente por fora, o painel – que funciona sob os auspícios da Organização das Nações Unidas – divide-se em três principais grupos. O Grupo de Trabalho I (WGI) estuda as bases físicas do clima da Terra e escrutiniza em minúcias questões referentes à modelagem climática. O Grupo de Trabalho II (WGII), por sua vez, busca esclarecer os impactos que tais mudanças ocasionarão sobre a natureza e a sociedade. Já o Grupo de Trabalho III (WGIII) foca-se em possíveis estratégias de mitigação. Ele procura orientar políticos e gestores na formulação de políticas públicas cientificamente embasadas para atenuar os efeitos das alterações climáticas.

O relatório que vem hoje a público é resultado dos trabalhos do WGII. O meteorologista José Marengo, do Inpe, que esteve em Yokohama na etapa final da publicação, afirma que, do ponto de vista político, não houve grandes entraves para se chegar à versão apresentada – o que é normalmente esperado em fóruns dedicados a discussões concernentes a responsabilidades ambientais. “Nenhum país tentou ‘atrapalhar’ os debates; todos colaboraram e os delegados mostraram preocupações reais quanto aos impactos das mudanças do clima”, diz ele à CH On-line.

O documento recém-divulgado sintetiza mais de 12 mil estudos científicos e complementa o relatório do WGI, publicado no final do ano passado. Em abril, deve ser publicado o relatório do WGIII. E, somados, os três imponentes calhamaços do WGI, do WGII e do WGIII formarão o Relatório de Avaliação 5 – ou, para os íntimos, o tão esperado AR5. Será uma grande síntese do conhecimento atual; o estado da arte nas ciências climáticas.

Henrique Kugler
Ciência Hoje On-line