Se a crença popular diz que filho feio não tem pai, por outro lado, todo mundo quer carregar criança bonita no colo. Não é diferente com a teoria da seleção natural, segundo a qual o ambiente seleciona os indivíduos mais bem adaptados, que tendem a sobreviver e perpetuar a espécie. Há mais de cem anos, um dos mais importantes postulados da ciência convive com uma certa crise de paternidade ideológica.
Embora os britânicos Charles Darwin (1809-1882) e Alfred Wallace (1823-1913) tenham sido os primeiros a publicarem trabalhos que apresentavam a hipótese de forma consistente e reconhecida pela comunidade científica, de vez em quando surgem nomes que teriam supostamente pensado aspectos da seleção natural antes dos ‘pais oficiais’.
O tabuleiro de nomes que põem em xeque a condição de Darwin e Wallace acaba de ganhar mais um ‘candidato’: o geólogo James Hutton (1726-1797), autor de Elementos da Agricultura , interrompido no ano de sua morte. Esse trabalho surpreende por alguns de seus fragmentos, em que o autor mostra conhecimento de variabilidade e interação espécie-ambiente, conceitos que embasam a argumentação de Darwin em prol de sua teoria.
Foi o também geólogo Paul Pearson, da Universidade de Cardiff (País de Gales), quem trouxe a público o ‘novo’ trabalho de Hutton, em artigo publicado na revista Nature de 16 de outubro. Não fosse a data do manuscrito, provavelmente não mereceria tanta atenção. No entanto, ele foi publicado 62 anos antes de A Origem das espécies , trabalho que notabilizou Darwin como um dos pais dos estudos sobre seleção natural. Em outras palavras, podemos estar diante do avô mais velho da consagrada teoria.
Isso porque Hutton menciona em alguns trechos de sua obra que as espécies variam entre si e que essas modificações, se vantajosas para a adaptação da espécie ao ambiente, tendem a ser transmitidas aos descendentes. São proposições que chegam muito perto da idéia de seleção aleatória pelo ambiente, que diferenciou as teorias de Darwin e Wallace das publicadas até então.
Segundo o químico Ricardo Ferreira, pesquisador emérito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), essas idéias representaram de fato uma novidade no pensamento da época, marcado pela imutabilidade professada na teoria criacionista e pelos erros da idéia lamarckiana.
“Hutton só não conseguiu enxergar que a variação ocorrida dentro de uma espécie, dando lugar a diferentes variedades, é da mesma natureza da que origina novas espécies. E aí reside o mérito de Wallace e Darwin”, diz o professor. “Isso porque, quando há separação geográfica ou de hábitat por muito tempo, pode haver uma diferenciação tal que não permita a produção de descendentes férteis.”
Se a geografia contribui mesmo para a diferenciação, talvez esteja aí a explicação para tantas idéias semelhantes saírem do mesmo lugar. Tanto Hutton e Darwin como William Wells e Patrick Matthew — outros com idéias anteriores a Darwin — viveram grande parte de sua vida em Edimburgo, na Escócia. Pelo visto, uma cidade que fala o idioma da seleção natural.
Da origem da Terra à formação das espécies :
James Hutton é considerado um dos mais importantes geólogos da história
Apesar de seu trabalho na área do evolucionismo ter sido recém-descoberto por Paul Pearson, Hutton é um velho conhecido da geologia por seus estudos sobre a formação da Terra. Segundo ele, a composição das rochas do planeta é uma das muitas provas de que ele foi formado bem antes do que relata a Bíblia (somente 6 mil anos). Por isso, suas idéias foram consideradas bastante revolucionárias na época — século 18 –, quando abriram um importante campo de estudo para a geologia moderna.
Enquanto isso, um outro campo da ciência tentava explicar como as espécies evoluíam, em uma tentativa de quebrar o dogma bíblico de que as espécies eram perfeitas e imutáveis.
O francês Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829) acreditava que os indivíduos modificavam suas características para se adaptarem ao ambiente em que viviam. Era uma idéia que já se aproximava bastante da de Darwin e Wallace, mas que se diferenciava em um ponto fundamental: a interação ambiente-espécie.
Lamarck pensava que as girafas, uma vez impossibilitadas de alcançar o alimento nas copas das árvores, começavam, com o tempo, a esticar o pescoço cada vez mais. Isso provocava o aumento de seu tamanho, característica passada para os descendentes, que já nasciam ’adaptados’ ao que o ambiente exigia.
Foi nessa mesma época — passagem do século 18 para o 19 — que Hutton também resolveu se aventurar pelo evolucionismo e escreveu Elementos da Agricultura. No entanto, algum motivo levou o escocês a não publicar seu trabalho, que acabou, anos mais tarde, indo parar na biblioteca de Edimburgo. Não se sabe que motivo foi esse, mas especula-se que tenha sido o tamanho da obra: um conjunto de 1045 páginas divididas em dois volumes e dois anexos.
Elementos da Agricultura mostra como a natureza é capaz de originar indivíduos de uma mesma espécie com características diferentes entre si. Hutton se apropria dessa diferenciação para argumentar que a natureza é perfeita em seus desígnios e, a partir daí, sugerir que os criadores de animais e plantas tirem proveito dessa variabilidade. Para Hutton, eles poderiam promover cruzamentos entre as espécies com as melhores características e terem, assim, uma prole que preencha os requisitos desejados.
É nesse momento que Hutton apresenta seu pensamento mais ousado. Ele propõe que, dentre as muitas habilidades de um cão, tanto pode haver uma raça especialista em farejar objetos quanto uma outra dotada de maior agilidade. Segundo Hutton, o cruzamento desses dois indivíduos com características diferentes pode originar um descendente tanto de bom faro como de grande agilidade. Se o mesmo fosse feito com a prole, a tendência seria a perpetuação dessa raça híbrida.
Para ele, a natureza age do mesmo modo, ao selecionar os indivíduos que se adaptam melhor ao ambiente em que vivem, promovendo, assim, o melhoramento natural daquela espécie. “As formas mais bem adaptadas serão as mais certas de permanecerem, enquanto as menos adaptadas serão as primeiras a desaparecerem”, afirma em seu manuscrito.
Rafael Barros
Ciência Hoje On-line
13/11/03