Lesões que contam história

Diz-me como te machucas e te direi quem és. Uma pesquisa desenvolvida pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) analisou as lesões em ossos de indivíduos que habitavam a região da Ilha Grande, no Rio de Janeiro, há mais de 3 mil anos. A natureza e a freqüência das lesões revelam detalhes da divisão do trabalho e dos hábitos das populações sambaquieiras, que habitavam todo o litoral brasileiro.

O labiamento (ilustrado à esquerda) – uma deposição óssea em cima da articulação – foi uma das lesões mais encontradas nos indivíduos pré-históricos. Já a eburnação (mostrada à direita) é uma das lesões mais sérias dentre as observadas: com o atrito entre os ossos, uma parte da articulação é perdida e o osso ganha aparência de marfim (fotos: Angélica Estanek).

Dois tipos de lesões foram avaliadas na pesquisa: a osteoartrose – que, ao contrário da osteoartrite, ocorre principalmente devido ao próprio uso da articulação e não a patologias – e os traumatismos agudos, causados por acidentes ou violência.

O estudo analisou 30 indivíduos cujas ossadas esqueletos estão sob a guarda do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Foram avaliados seis conjuntos de articulações – ombro, cotovelo, punho, quadril, joelho e tornozelo.

A pesquisa revelou que as mulheres tinham mais incidência de lesões nos membros superiores (18,3%) do que os homens (14,7%). Já nos membros inferiores, os homens apresentaram mais problemas: 11,1% dos indivíduos masculinos mostravam alterações, contra 6,2% dos femininos. O próximo passo foi comparar as lesões encontradas com os movimentos que possivelmente as teriam originado.

Ao aliar esses dados a informações arqueológicas sobre essa população, é possível entender melhor seus costumes e a sua divisão do trabalho. “O baixo índice de lesões nos membros inferiores mostra que esses grupos andavam pouco para explorar o território. Mas, quando o faziam, era uma atividade predominantemente masculina”, explica a paleopatologista Angélica Estanek, da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), ligada à Fiocruz.

“Já as mulheres possivelmente ajudavam tanto nas tarefas gerais quanto em algumas atividades específicas, como o preparo dos alimentos e o cuidado com os bebês, o que pode ter tido influência sobre os percentuais mais elevados de lesões nos membros superiores.”

Lesões causadas pela pesca
Algumas lesões nos membros superiores podem ter sido causadas por atividades ligadas à pesca, em especial no caso dos homens. “Os restos de peixes e mamíferos marinhos e a cultura material predominantemente voltada para a pesca nos fazem acreditar que a pesca era uma atividade comum”, lembra a paleopatologista. “Para realizá-la, o grupo provavelmente nadava e remava, o que significa um uso freqüente de determinadas articulações.”

O índice de traumatismos acidentais foi ainda menor do que o esperado pela pesquisadora. “Podemos concluir que esses grupos conseguiram uma integração muito boa com o ambiente. Eles tinham provavelmente uma boa organização e grande conhecimento do local e não se colocavam em perigo”, avalia Estanek.

Povos sambaquieiros
Os povos sambaquieiros habitaram no litoral brasileiro antes dos portugueses e mesmo dos índios Tupi-guarani, entre 5 mil e mil anos atrás. Esse nome vem dos monumentos construídos por esses grupos em seus territórios: os sambaquis (tamba + ki em tupi – “monte de conchas”). Além de conchas, essas estruturas continham também restos alimentares e de fogueiras e artefatos da cultura material. Nos sambaquis, eram realizados os enterramentos dos mortos. Esses montes eram construídos durante gerações e representavam o marco territorial da paisagem para os grupos sambaquieiros.

“Os traumatismos acidentais seriam causados, por exemplo, por quedas de grandes alturas, ocorridas na exploração de locais mais elevados ou na subida em árvores. A baixa ocorrência desse tipo de lesão mostra que essas práticas eram provavelmente pouco realizadas.”

Estanek lembra que essas hipóteses somente podem ser formuladas a partir da interação com outras áreas do conhecimento. “A paleopatologia dialoga, por exemplo, com a geologia, biologia e geografia, que trazem informações sobre o local, com a arqueologia, que analisa diversos materiais deixados por essa população, como a cultura material, seus artefatos e restos alimentares e com as ciências biomédicas, que explicam a relação das lesões encontradas nos ossos com os movimentos”, ressalta.

Tatiane Leal
Ciência Hoje On-line
21/10/2008