Luta de classes e malandragem cem anos atrás

 

Os empregados do comércio do Rio de Janeiro do final do século 19 e início do 20 viviam em condições desumanas. Seu trabalho se estendia pelo dia inteiro e eles não tinham direito a descanso semanal. Como também eram funcionários de bares e casas de espetáculo da cidade, trabalho e lazer se misturavam. Apesar da lealdade aos patrões que aparentavam ter, os caixeiros, como eram então conhecidos, reivindicavam redução da jornada e melhores condições de trabalho, mas buscavam evitar o conflito direto com os empregadores. Tudo era feito com muita perspicácia e malícia…

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A charge acima, publicada em A Vida Fluminense de 30/10/1869, mostra a reivindicação dos caixeiros por um descanso semanal. Assim, os caixeiros poderiam se divertir aos domingos (no alto), enquanto os patrões fariam seu serviço (abaixo)

 

Descrever a realidade social dessa classe foi o objetivo da tese de doutorado da historiadora Fabiane Popinigis, recém-defendida na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Por meio da análise de jornais, atas da Câmara Municipal, cartas e até processos criminais, Popinigis retratou as condições de trabalho e moradia e as relações sociais dos trabalhadores de comércio carioca entre 1850 e 1912. Ela também abordou os encontros dos caixeiros fora do ambiente de trabalho, sobretudo nas casas de show e botequins, dos quais os caixeiros eram freqüentadores e funcionários.

Os caixeiros trabalhavam nos armazéns de 15 a 16 horas por dia. No começo e fim do mês, a jornada podia chegar a 22 horas. Moravam no centro da cidade e a grande maioria dormia no próprio local de trabalho. Eram eles que atendiam no balcão, pesavam, embrulhavam, vendiam, organizavam e carregavam as mercadorias, faziam as entregas e cobranças aos fregueses; eram responsáveis ainda pela contabilidade e pela limpeza e arrumação da loja.

Muitos deles aturavam essa sobrecarga de trabalho graças ao sonho de ascensão profissional, que gerou o estereótipo do caixeiro oportunista e ambicioso, cuja única intenção era subir na hierarquia social. Porém, com o crescimento do comércio e o conseqüente distanciamento entre patrão e empregado, esse sonho se tornou cada vez mais distante e os caixeiros passaram a lutar de forma mais agressiva primeiramente pelo descanso dominical e, depois, pela diminuição das horas de trabalho diário.

 

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A charge acima, publicada em O Malho em 18/08/1906, representa o movimento conhecido como fechamento das portas. Naquele ano, muitas manifestações de reivindicação estouraram no centro do Rio

“Essa luta era travada cotidianamente dentro das próprias casas comerciais”, diz Popinigis. “Ao contrário do que se pensa, os trabalhadores do comércio não viviam inteiramente no mundo dos patrões, mas conquistavam seu espaço de maneira bastante sutil, na base da patuscagem, que é como a malandragem era chamada na época.”

 

Segundo a historiografia tradicional, os trabalhadores, sobretudo os operários de fábricas, criavam sindicatos combativos contra a classe dominante como forma de assegurar seus interesses e direitos. Já os trabalhadores do comércio do Rio do final do século 19 evitavam esse conflito direto com os empregadores, até porque conviviam diariamente com eles, o que se modificou nos primeiros anos do século 20, quando as reivindicações tomaram formas mais coletivas e combativas. “Quis mudar o enfoque da historiografia tradicional ao mostrar que existem diferentes formas de se combater injustiças sociais”, disse Popinigis.

Liza Albuquerque
Ciência Hoje On-line
02/03/04