Se você passou por alguma banca de jornais esta manhã, já deve ter visto as manchetes com grande destaque para uma das mais importantes notícias de ciência da década: pela primeira vez, cientistas conseguiram criar uma célula controlada por um genoma inteiramente sintético, criado a partir de instruções de computador.
O genoma da bactéria Mycoplasma mycoides – composto por 1,08 milhão de pares de bases dispostas em um único cromossomo – foi implantado em uma célula natural de outra bactéria cujo material genético havia sido removido. A célula obtida comportou-se como as bactérias da mesma espécie que ocorrem na natureza e mostrou-se capaz de se reproduzir de forma contínua.
O feito é mais uma obra do grupo do geneticista norte-americano Craig Venter, que já havia sintetizado o genoma de uma bactéria e conseguido transplantar o genoma de um microrganismo para outro. A novidade anunciada hoje é fruto de 15 anos de pesquisas de Venter e uma equipe de duas dezenas de pesquisadores, que consumiram cerca de 40 milhões de dólares.
Publicada com destaque na edição de hoje da Science, a proeza foi recebida com entusiasmo por pesquisadores da área. “Trata-se de um trabalho fantástico, um tour de force tecnológico”, avalia o geneticista Sergio Danilo Pena, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e titular da coluna Deriva Genética, da CH On-line.
No futuro, a técnica poderá ser usada para criar microrganismos com genoma artificial que sintetize proteínas de interesse econômico – capazes de descontaminar águas poluídas ou de atuar como vacinas ou biocombustíveis, por exemplo. “Este avanço tecnológico promete possibilidades fantásticas e otimistas de produzir microrganismos capazes de fazer o que quisermos”, resume Sergio Pena.
Genoma sintético, citoplasma natural
O microrganismo produzido pela equipe de Craig Venter tem o genoma da bactéria Mycoplasma mycoides, além de sequências genéticas que atuaram como marcadores inseridos para identificar as sequências sintetizadas em laboratório.
O genoma artificial foi implantado no citoplasma de uma célula não sintética da bactéria Mycoplasma capricolum. A nova célula obtida foi ‘reinicializada’ e o genoma sintético passou a produzir normalmente as proteínas da M. mycoides, exatamente como fazem as bactérias dessa espécie encontradas na natureza.
O grupo enfrentou um grande obstáculo, no entanto: a ‘linha de montagem’ genômica dos laboratórios só é capaz de sintetizar pequenas sequências de bases a cada vez. “A síntese do genoma do Mycoplasma foi espetacular principalmente porque ele foi montado a partir de pequenos fragmentos de cerca de 60 bases apenas – é o máximo que se consegue sintetizar com baixa taxa de erros”, explica Sergio Pena.
Vida artificial?
A notícia da bactéria com o genoma sintético foi publicada com destaque na imprensa de todo o mundo. Alguns pesquisadores se manifestaram com entusiasmo incontido. Em reportagem publicada na própria Science, o filósofo Mark Bedau, editor do periódico Artificial Life, não hesitou em qualificar o feito como “um momento definidor na história da biologia e da biotecnologia”.
No Brasil, os grandes jornais também relataram a novidade com otimismo. Mas ainda é cedo para dizer que foi “criada vida artificial”, como destacou O Globo em manchete. O físico Adilson de Oliveira, professor da Universidade Federal de São Carlos e colunista da CH On-line, pede cautela no texto que publicou hoje em seu blogue sobre a novidade.
“O experimento pode ainda não ter realizado a criação de vida artificial, porque a bactéria receptora ainda foi natural, apenas foi retirado o seu genoma”, lembra Oliveira. “Seu citoplasma ainda permaneceu cheio de substâncias próprias. Foi como se tivessem trocado o software no hardware de uma célula.”
Seja como for, a novidade suscita esperanças e medo, como lembrou Marcelo Leite em análise publicada na Folha de hoje (disponível para assinantes). E levanta também uma série de novas questões éticas, como reconheceu Craig Venter. “Este é um passo importante tanto do ponto de vista científico quanto filosófico”, disse o geneticista. “Ele certamente mudou minha perspectiva sobre a definição da vida e de como ela funciona.”
Bernardo Esteves
Ciência Hoje On-line
Este texto foi atualizado para incluir a seguinte alteração:
Diferentemente do que estava escrito no segundo parágrafo da matéria, o genoma da bactéria Mycoplasma mycoides foi implantado em uma célula natural de outra bactéria cujo material genético – e não o núcleo – havia sido removido. (05/12/2011)