Medicina tradicional ameaça répteis

A ampla utilização medicinal e religiosa de certas espécies de répteis e a falta de ações de monitoramento e fiscalização dessas práticas têm sido ameaças adicionais para populações desses animais, tradicionalmente usados por diversas comunidades no Brasil e no mundo. Essa foi uma das conclusões de um estudo de pesquisadores da Paraíba que fizeram um levantamento bibliográfico em escala mundial sobre o uso de répteis na medicina tradicional.

A gordura do jacaré-de-papo-amarelo (Cayman latirostris) é usada tradicionalmente por várias populações para tratar o reumatismo (foto: OpenCage).

Os cientistas constataram que certas espécies de répteis podem ser usadas para tratar uma ou mais doenças, com posologias variadas. O reumatismo, por exemplo, é comumente tratado no Brasil e em outros países com a gordura do jacaré-de-papo-amarelo (Cayman latirostris) – animal sul-americano ameaçado de extinção –, que é aplicada diretamente sobre os membros afetados pela doença.

Já pílulas feitas de material extraído de cobras cascavel são indicadas no México para problemas como acne, dor nos ossos, doenças cardíacas e até câncer. Além disso, os répteis também são usados em práticas populares chamadas simpatias para diversos fins.

O estudo, publicado na revista Biodiversity and Conservation, foi feito pela equipe do biólogo Rômulo Alves, da Universidade Estadual da Paraíba, e por outros dois pesquisadores, Washington Vieira e Gindomar Santana, da Universidade Federal da Paraíba. Os objetivos eram identificar as espécies de répteis usadas com fins terapêuticos e discutir as implicações desses usos para sua conservação.

Alves lembra que o uso medicinal das espécies é uma prática antiga e comum em comunidades tradicionais e geralmente feita de modo sustentável. Porém, a procura por esses tratamentos alternativos tem se expandido para áreas urbanas e fomentado o comércio de animais para fins medicinais.

Em alguns locais, o uso desses produtos terapêuticos, considerados exóticos e curiosos, está fortemente associado à cultura popular e chega a ser veiculado como propaganda turística. “Esses fatores, aliados aos problemas já existentes, como a destruição do hábitat dos répteis, seu uso como alimento ou animais de estimação e a biopirataria, acabam por intensificar a ameaça de extinção a espécies mais exploradas”, ratifica o pesquisador.

Populações tradicionais prejudicadas
Os maiores prejudicados com o declínio populacional dos répteis são os povos que dependem desses animais, como os indígenas brasileiros e comunidades pesqueiras tradicionais, que sofrem com a perda de alternativas de tratamento para certas doenças. O próprio conhecimento tradicional associado ao uso de animais com fins terapêuticos corre risco de se perder. A indústria farmacêutica também pode ser indiretamente afetada, uma vez que parte expressiva dos medicamentos desenvolvidos atualmente se baseia no conhecimento popular. Além disso, há o risco de que a ciência nunca venha a conhecer o potencial medicinal de algumas espécies.

Como soluções, Alves propõe uma série de medidas de caráter político e social. “Acredito na necessidade de se investir em educação ambiental junto às comunidades que usam esses animais em suas práticas tradicionais”, argumenta. “Em paralelo, os governos devem oferecer melhores condições de assistência médica a essas pessoas, para que elas reduzam o uso dessas espécies como alternativas terapêuticas ou que as substituam por animais domésticos e plantas”, completa.

Segundo Alves, a maior parte dos estudiosos da zooterapia no mundo se encontra na Ásia, em países como China, Camboja e Tailândia, onde o uso medicinal de animais é bastante comum. Já no Brasil, pesquisas nessa área estão concentradas nas regiões Norte e Nordeste, onde populações locais adotam esses animais há gerações para o tratamento de problemas de saúde e em rituais religiosos.

Alves estuda a zooterapia no Brasil desde 2002 e espera que seu trabalho estimule outros estudos nessa área. O pesquisador percorreu mercados municipais e comunidades pesqueiras de estados como Paraíba, Piauí, Maranhão e Pará, onde fez um levantamento, por meio de questionários e conversas informais com usuários e comerciantes, dos animais usados no tratamento de doenças e da forma de prepará-los e aplicá-los. “O próximo passo da pesquisa é aprofundar os estudos sobre uso medicinal dos mamíferos”, anuncia.

Andressa Spata
Ciência Hoje On-line
29/02/2008