Mercado ilegal

Metade de todo o desmatamento ocorrido nos últimos dez anos em florestas tropicais foi causada pelo uso ilegal da terra para a agropecuária e a exploração de madeira voltadas majoritariamente para a exportação. O número impressionante é de um relatório lançado na semana passada pela ONG Forest Trends. O estudo aponta ainda que, no mesmo período, 90% do desflorestamento na Amazônia brasileira se deram na ilegalidade, principalmente para criação de gado, plantação de soja e extração de madeira.

O estudo analisou a perda de vegetação em 17 países que abrigam florestas tropicais, como o Brasil, a Colômbia, o Congo e a Indonésia. Para estimar a parcela de desmatamento ilegal nesses locais, foram tomados como base os números da produção agrícola e os registros oficiais de uso indevido da terra, como casos em que o produtor rural não respeitou uma área de conservação pré-determinada ou que praticou a grilagem, ocupando e desmatando terras públicas ilegalmente. Com esses valores em mãos, os autores do relatório puderam calcular também a parcela de desmatamento referente à exportação de bens agrícolas.

“Ficamos surpresos com os resultados; foi a primeira vez que um estudo tentou ver o impacto global do desmatamento ilegal e sua influência no mercado internacional, e os números foram maiores do que esperávamos”, diz um dos autores, o especialista em manejo florestal Bruce Cabarle, diretor emérito da Forest Trends.

O estudo estima que quase 40% de todo o óleo de palma e 20% de toda a soja comercializados internacionalmente venham de áreas desmatadas ilegalmente

Segundo o relatório, as exportações de bens agrícolas motivaram 25% de todo o desmatamento ilegal em florestas tropicais entre 2000 e 2012. Os principais produtos cultivados foram a soja, para fabricação de ração animal, e a palma, para extração de óleo, amplamente usado na indústria alimentícia.

O estudo estima que quase 40% de todo o óleo de palma e 20% de toda a soja comercializados internacionalmente venham de áreas desmatadas ilegalmente. Em relação à madeira, esse valor é de 33% e, para a carne bovina, 14%.  No caso da soja, o Brasil é campeão de ilegalidade: 75% dos grãos exportados são fruto da derrubada proibida de florestas. Já em relação à palma, a Indonésia se destaca, com 80% da produção destinada a mercados estrangeiros vinda do desmatamento não autorizado.

O comércio dessas mercadorias ilegais movimenta 61 bilhões de dólares por ano e os principais compradores são União Europeia (UE), China, Índia, Rússia e Estados Unidos. Um recente estudo norueguês estima que 15% das emissões de carbono associadas com o desmatamento para a pecuária e 50% das emissões associadas ao desmatamento para cultivo de soja estejam ligados à exportação.

“Cinco campos de futebol de florestas tropicais estão sendo destruídos a cada minuto para fornecer esses bens de exportação”, diz Sam Lawson, outro autor da pesquisa. “Dificilmente se encontra um produto nas prateleiras dos supermercados que não esteja potencialmente ‘manchado’.” O pesquisador ainda destaca que, como o relatório levou em conta apenas os registros oficiais de desmatamento ilegal, os valores podem ser até maiores.

Leis fracas e de memória curta

Os cientistas ressaltam que parte desse cenário se explica pela carência de uma legislação clara quanto às permissões para desmatar e de uma fiscalização efetiva nos países que detêm florestas tropicais. “Um ambiente regulatório confuso faz com que o desmatamento legal seja dificultado para empresas médias e pequenas, enquanto empresas que descumprem a lei com frequência saem impunes e podem ainda ser recompensadas com atos de anistia e mudanças retroativas na lei”, comenta Cabarle.

Parte desse cenário se explica pela carência de uma legislação clara quanto às permissões para desmatar e de uma fiscalização efetiva

O cenário relatado pelo pesquisador soa familiar. No Brasil, o desrespeito às reservas legais e a não recuperação das áreas ilegalmente desmatadas é uma realidade. Somente no Mato Grosso, entre 2001 e 2009, 90% do desmatamento do estado originaram-se da ocupação não permitida de área destinada à preservação permanente – que é de 80% da propriedade em regiões de floresta amazônica.

Depois da aprovação do novo Código Florestal, sancionado em 2012, o reflorestamento de grande parte das áreas degradadas deixou de ser obrigatório. Segundo estudo conduzido por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) publicado na Science no início do ano, o novo código reduziu em 58% as áreas desmatadas que deveriam ser restauradas – de 50 milhões de hectares na legislação anterior para 21 milhões na atual.

O líder do levantamento, o cartógrafo Britaldo Soares Filho, acredita que essa anistia só serviu de estímulo para a ilegalidade. “Os próprios produtores rurais têm percebido que o desmatamento resulta a longo termo em prejuízo financeiro, mas a anistia pode levá-los a ver que o risco da ilegalidade é baixo e a desmatar novamente, sobretudo se não forem implantadas as medidas de controle previstas na nova legislação.”

Um dos mecanismos do novo Código Florestal para impedir o desmatamento é o chamado Cadastro Ambiental Rural (CAR), obrigatório para todos os produtores rurais. Por meio dessa inscrição feita na internet, o fazendeiro indica a localização e a extensão de sua propriedade e o sistema fornece as imagens de satélite do local.  Assim, é possível que cada estado tenha controle sobre as áreas desmatadas e as áreas de reserva dentro de cada fazenda.

Cadastro Ambiental Rural
Medidas de controle do desmatamento previstas no novo Código Florestal, como o Cadastro Ambiental Rural (CAR), ainda não estão em pleno funcionamento. (imagem: CAR/ Ministério do Meio Ambiente

Em meados do ano que vem, termina o prazo para que todas as 5,6 milhões de propriedades rurais do país estejam cadastradas no sistema, mas ele ainda não está em pleno funcionamento.

Enquanto isso, o desmatamento ilegal continua e seu controle fica dependente de ações isoladas de fiscalização do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Só no Mato Grasso, no ano passado, o órgão lavrou 492 autos por desmatamento ilegal e arrecadou 242 milhões de reais em multas.

Para o engenheiro florestal Paulo Barreto, do Instituto Homem e Meio Ambiente na Amazônia (Imazon), as multas não resolvem o problema. O pesquisador defende mais ações integradas entre o Ibama e a Polícia Federal, como a operação Castanheira, que no mês passado emitiu 14 mandados de prisão a fazendeiros que invadiram terras na Amazônia para desmatá-las e transformá-las em pasto. A iniciativa se destacou por não focar apenas os crimes ambientais, que geralmente têm penas mais brandas, mas por indiciar também por crimes com penas maiores, como invasão de terras públicas, furto, formação de quadrilha, sonegação fiscal e lavagem de dinheiro.

Responsabilidade partilhada

Os autores do relatório da Forest Trend enfatizam que a responsabilidade pelo desmatamento não é só dos países produtores, como o Brasil, mas também dos compradores dos bens agropecuários e da madeira. “É uma responsabilidade compartilhada, o que pode parecer um problema do Brasil é também um problema global”, diz Cabarle.

Segundo os autores do relatório, a responsabilidade pelo desmatamento não é só dos países produtores, como o Brasil, mas também dos compradores dos bens agropecuários e da madeira

O pesquisador defende que, para resolver a questão, é preciso, além de fortalecer o cumprimento das leis nos países produtores, fazer acordos bilaterais para a compra desses bens, a exemplo do que foi estabelecido entre o Brasil e a Holanda durante a Rio+20. Na ocasião, o governo e algumas empresas do país europeu se comprometeram a negociar apenas soja certificada do Brasil a partir de 2016.

Barreto acredita que os acordos internacionais são uma boa saída desde que sejam globais, ou seja, que valham para o desmatamento em qualquer bioma e não apenas na Amazônia. “É muito comum vermos acordos que cobrem apenas uma área, levando, por exemplo, ao desmatamento no cerrado ou em países vizinhos”, diz.

O pesquisador também ressalta que os acordos internacionais dependem da implantação de mecanismos de controle e fiscalização mais efetivos dentro dos países produtores. “Qualquer acordo depende de mecanismos práticos de controle, de poder rastrear as fazendas e associar com o controle de desmatamento por satélite e da capacidade de rastrear os bens, saber de onde saem e para onde vão”, pontua.

Gado
Ainda falta controle da origem e da destinação dos bens agropecuários brasileiros. Medidas como a identificação individual do gado, já adotadas na Austrália e no Uruguai, por exemplo, poderiam facilitar o combate à ilegalidade. (foto: Eduardo Amorim/ Flickr – CC BY- NC-SA 2.0)

Soares Filho destaca ainda a importância de manter os acordos nacionais vigentes, como a moratória da soja, assinada há oito anos por empresas ligadas à Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove) e à Associação Nacional dos Exportadores de Cereais (Anec), com o compromisso de não comprar soja de área desmatada na Amazônia.

A moratória foi revalidada diversas vezes e, de lá para cá, o corte de vegetação nativa na região foi reduzido mais de 400%. Mas o acordo termina em dezembro deste ano e seus signatários já manifestaram o interesse de não renová-lo. “Precisamos continuar com a moratória e inclusive levá-la para os outros biomas, como o cerrado e os pampas, onde há uma grande expansão da agropecuária e áreas de vegetação nativa estão sendo transformadas em plantação de soja”, diz Soares Filho.

O pesquisador lembra também da necessidade de programas de apoio para incentivar os produtores rurais a se adequarem à lei. “O ideal não é só punir aqueles que estão ilegais, mas ajudar os produtores rurais para que eles possam se certificar e ganhar bônus financeiros pela venda desses bens”, defende. “Temos que criar um mercado onde o produto legal e certificado tenha um nicho garantido.”

Sofia Moutinho
Ciência Hoje On-line