A chegada do homem ao espaço fez surgir novas possibilidades de pesquisa em todos os campos da ciência. Na área de biologia celular, as condições únicas do ambiente espacial permitem a realização de estudos que, aliados a tecnologias avançadas desenvolvidas na Terra, têm contribuído para o avanço das pesquisas sobre câncer e podem ajudar na formulação de novas opções de tratamento para a doença e na melhora da qualidade de vida dos pacientes.
Em comemoração ao aniversário da primeira missão espacial tripulada, realizada em 12 de abril de 1961, artigo publicado na Nature Reviews Cancer reúne os principais resultados obtidos no espaço ao longo de mais de 40 anos que tiveram impacto nos estudos sobre câncer. O maior destaque são as pesquisas que mostram a influência das condições físicas do ambiente espacial, especialmente a gravidade diminuída (ou microgravidade), sobre o crescimento, o funcionamento e a morfologia das células cancerosas. O pontapé inicial desses estudos foram experimentos com células humanas conduzidos no início dos anos 1970 durante o programa espacial Skylab, dos Estados Unidos.
No espaço, a microgravidade permite que as células cancerosas se multipliquem de forma tridimensional, em um processo semelhante ao que ocorre em humanos e outros animais. Isso não acontece com cultivos celulares tradicionais na Terra, onde a força da gravidade faz com que o seu crescimento em placas seja achatado, formando uma estrutura de duas dimensões. Segundo os autores do artigo, o crescimento tridimensional facilita as interações celulares e é um aspecto importante para a definição da biologia de células e tecidos cancerosos, incluindo a formação e a progressão do tumor.
Esses dados levaram à criação de técnicas especiais para cultivar células em três dimensões na Terra e permitir o seu crescimento ilimitado. Os modelos celulares tridimensionais terrestres são capazes de simular tanto áreas tumorais que crescem ativamente e respondem a agentes quimioterápicos quanto tumores volumosos com regiões de baixa atividade proliferativa e alta resistência a medicamentos.
A médica Jeanne Becker, coautora do artigo e assessora científica da Nano3D Biosciences, empresa norte-americana que desenvolve dispositivos de cultura celular, considera promissoras as pesquisas que usam as condições da microgravidade para alterar a forma como as células cancerosas crescem e se replicam. “Como as células se comportam de forma muito diferente no espaço, podemos usar esse conhecimento para aprender a controlar o crescimento das células cancerosas na Terra e desenvolver novos tipos de terapia”, disse em entrevista à CH On-line.
Células alteradas
A exposição à microgravidade também altera a forma, os elementos do citoesqueleto (responsável pela sustentação e movimentação celular) e a expressão genética das células, o que pode trazer pistas sobre a biologia tumoral.
Em relação à forma, no espaço as células tornam-se mais arredondadas, o que pode alterar a sua adesão à matriz extracelular. Já a desorganização da arquitetura básica da célula pode afetar atividades como a sinalização e a migração celular e a apoptose (autodestruição da célula de modo ordenado). “Atividades biofísicas celulares que afetam a capacidade metastática da célula tumoral, incluindo migração, adesão e invasão, são influenciadas pela organização citoesquelética”, afirmam os autores do artigo.
As mudanças na expressão genética de células cultivadas no espaço vão desde genes que regulam a morfologia celular até aqueles envolvidos na replicação e supressão tumoral. Por exemplo, um estudo publicado em 2005 com células de tumor de ovário humanas cultivadas durante 14 dias na Estação Espacial Internacional mostrou reduzida expressão de citocinas associadas ao crescimento de vários tipos de tumor, inclusive o ovariano. Outros trabalhos também relacionam essas citocinas à resistência de células de câncer de mama a medicamentos para tratar a doença.
Aplicações terapêuticas
Além de contribuir para as pesquisas na área de biologia celular, os experimentos conduzidos no espaço já resultaram em avanços que poderão beneficiar mais diretamente os pacientes com câncer. Uma tecnologia de microencapsulamento criada parcialmente durante missões espaciais entre 1996 e 1998 foi usada em estudos para o desenvolvimento de novos sistemas de administração de medicamentos para câncer de próstata. Atualmente, ela está sendo comercializada para a confecção de microcápsulas com drogas contra o câncer.
Na área terapêutica, destaca-se também uma tecnologia que usa diodos emissores de luz e foi empregada originalmente em estudos para o crescimento de plantas no espaço. Aqui na Terra, uma pesquisa com pacientes que passaram por transplante de medula mostrou a eficiência da tecnologia em reduzir a dor provocada por inflamações que surgem na boca como efeito colateral da quimioterapia.
Jeanne Becker, que foi fundadora, presidente e diretora executiva do Centro para o Avanço da Ciência no Espaço, organização para a gestão do Laboratório Nacional dos Estados Unidos na Estação Espacial Internacional, é otimista em relação ao futuro da pesquisa espacial associada ao câncer. “Como a Estação Espacial Internacional está agora finalizada, ela poderá ser usada em um grau maior para todos os tipos de estudos, desde a pesquisa básica até trabalhos direcionados à aplicação comercial”, ressalta.
Thaís Fernandes
Ciência Hoje On-line