Muito além da cultura

Se as cores tivessem som, as tonalidades escuras seriam agudas ou graves? A maioria das pessoas responderia que graves. Essa associação que fazemos entre cores e sons é observada por neurocientistas há anos. Agora, pesquisadores alemães e japoneses identificaram o mesmo fenômeno em chimpanzés e sugerem que a correlação não é cultural, mas sim biológica.

“Essa associação entre cores e sons é muito bem documentada e transparece na linguagem”, diz a neurocientista e psiquiatra Vera Ludwig, da Universidade de Berlim, Alemanha, e a principal autora da pesquisa, publicada na PNAS. “Em alemão, por exemplo, o termo ‘dunkler Ton’, som escuro, se refere a um som grave, enquanto em espanhol é usada a expressão ‘voces blancas’ para descrever sons agudos.”

Para saber se esse padrão é cultural ou evolutivo, a equipe japonesa do estudo conduziu uma série de testes comportamentais com humanos e chimpanzés, primatas que compartilham um ancestral comum conosco. Se o fenômeno fosse apenas cultural, não se manifestaria nos macacos.

Seis chimpanzés foram treinados para um jogo de identificação de cores. Um quadrado branco ou preto aparecia no monitor de um computador por alguns segundos entre outros dois quadrados maiores, um branco e outro preto, que permaneciam na tela. Os animais tinham que identificar o quadrado pequeno que surgia ao tocar no maior de cor correspondente. Ao acertar a tarefa, eles ganhavam uma recompensa.

Os seis chimpanzés e 36 humanos fizeram o mesmo teste de identificação de cores de duas maneiras. Em uma delas, sons agudos e graves eram tocados randomicamente ao fundo e, na outra, os sons correspondiam às cores (agudos com branco e graves com preto).

Como resultado, os pesquisadores observaram que tanto humanos quanto chimpanzés se saíram  melhor no desempenho da tarefa no segundo tipo de teste.

Ludwig: “Fica claro que a correlação entre cores e sons não surgiu por causa da linguagem ou da cultura”

O índice de acertos entre os macacos foi de 93% quando os sons ‘correspondiam’ às cores e 90% no teste com sons aleatórios. Entre os humanos, ocorreram apenas três erros – todos no primeiro tipo de teste –, mas o tempo de resposta caiu quando os sons não eram correspondentes. 

Os autores do estudo defendem que essa associação entre cores e sons não poderia ter sido aprendida pelos chimpanzés e supõem que ela seja uma característica evolutiva dos grandes primatas que teria surgido antes da divisão entre chimpanzés e humanos, no ancestral comum das duas espécies.

“Treinar chimpanzés para desempenhar tarefas associadas ao som, como apertar um botão ao ouvir um determinado som, é muito difícil”, comenta Ludwig. “Assim é surpreendente que a performance deles tenha sido afetada pelos sons que eram irrelevantes para a tarefa visual. Eles não tiveram nenhum treino prévio para associar sons agudos com cores claras e sons graves com cores escuras. Fica claro que a correlação não surgiu por causa da linguagem ou da cultura, embora seja provável que tenha um papel importante no desenvolvimento da linguagem.”

Veja um vídeo do experimento

Conclusão pretensiosa

O estudo levanta uma grande hipótese, mas segundo o psicofísico especializado no estudo da visão Russel Hamer, professor convidado da Universidade de São Paulo, a teoria não se sustenta somente com os experimentos realizados pelos autores. “Não dá para afirmar que essa relação é evolutiva só com base nos experimentos e nos resultados do estudo; são necessárias mais pesquisas”, afirma. 

Hammer: “Não dá para afirmar que essa relação é evolutiva só com base nos experimentos e nos resultados do estudo”

Russel também questiona a validade da metodologia utilizada. Segundo ele, os autores ignoram alguns conceitos importantes envolvidos no processo de interpretação da visão pelo cérebro. 

“Os autores falam na relação entre cores e sons, mas no estudo da visão nós não chamamos preto e branco de cores, mas sim de acromáticos, pois não são reconhecidos pela mesma região do cérebro que identifica as cores”, explica. 

Apesar de apontar pontos frouxos na pesquisa, o pesquisador acredita que estudos como este podem ser importantes para entender os mecanismos por trás da sinestesia, distúrbio neurológico no qual a pessoa mistura os sentidos e literalmente vê sons e ouve cores.


Sofia Moutinho

Ciência Hoje On-line