Nas garras da internet

Nada a ver com os males da rede. Essas garras da internet são para auxiliar o uso de seu conteúdo por pessoas surdas. Cerca de 9,8 milhões de brasileiros se encontram nessa condição e, entre eles, a taxa de analfabetismo é 28%, consideravelmente maior que a média no país – de 9,63%.

Uma possível explicação para o grande número de surdos iletrados é o fato de o português não ser a primeira língua da maioria dessas pessoas, que em geral apresentam dificuldade para aprender a escrita. Dessa forma, a maior parte do conteúdo disponível na rede não é compreendida pelos surdos.

Foi pensando nisso que o engenheiro da computação Stefan José Oliveira Martins, da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, desenvolveu em seu mestrado a ferramenta Colaborativa de Leitura e Ajuda a Web para Surdos (Claws, garras em português).

“A ferramenta pode contribuir no entendimento da língua por permitir a associação entre palavras, sinais e imagens”

Com figuras, vídeos e legendas complementares aos textos, a ideia é que ela seja incorporada a um navegador. “A ferramenta pode contribuir no entendimento da língua por permitir a associação entre palavras, sinais e imagens”, justifica a engenheira elétrica Lucia Vilela Leite Filgueiras, orientadora de Martins.

Filgueiras explica que a ferramenta funciona através de um sistema de busca, que procura na própria rede imagens relacionadas às palavras selecionadas. “A proposta é clicar em cima de uma palavra e a ferramenta fazer a busca na internet. Se o usuário quiser descobrir o seu significado, a Claws abrirá um dicionário em português e outro que irá traduzir a palavra para a língua de sinais.”

A ferramenta também permitiria, em longo prazo, a compreensão de frases e até páginas inteiras, com a ajuda da própria comunidade surda. O usuário cadastrado poderia produzir vídeos traduzindo o conteúdo para Libras, a Língua Brasileira de Sinais, e fazer o upload na Claws. A página acessada com a ferramenta indicaria aos usuários os vídeos associados.

Claws
A Claws funciona por meio de um sistema de busca, que procura na rede imagens relacionadas às palavras selecionadas. Há também a opção de consulta a dicionário, em português e em Libras. O usuário cadastrado pode subir vídeos e comentários para ajudar a melhorar a ferramenta. (imagem: Stefan Martins)

“Além disso, os surdos poderiam comentar a tradução, dando nota e apontando eventuais erros”, completa a engenheira. O instrumento também apontaria o local de residência da pessoa que produziu o vídeo, já que cada localidade possui um dialeto diferente da língua de sinais.

Filgueiras acrescenta que o último recurso adicionado ao protótipo da ferramenta foi a possibilidade de o usuário dispor de um serviço para assinantes, no qual haveria um intérprete para ler a página inteira em Libras.

Um estudo da comunidade surda brasileira

Na primeira etapa de seu trabalho, Martins fez uma pesquisa bibliográfica na busca de ferramentas de navegação na internet que promovessem autonomia aos usuários surdos. O engenheiro analisou 49 artigos e cinco livros disponíveis no site Bibliografia de Recursos sobre a Interação Homem-Computador (HCIBIB, na sigla em inglês), publicados de 2008 a 2011 no Brasil e no exterior.

Segundo ele, não encontrou entre o material pesquisado propostas semelhantes a que tinha em mente. Separou, no entanto, trabalhos sobre dispositivos móveis e não-móveis e sobre a vida cotidiana dos surdos, suas dificuldades e seu processo de significação da informação escrita.

Em seguida, analisou os recursos e funcionalidades de 14 interfaces destinadas à comunidade surda disponíveis na internet. A partir dessa análise, o engenheiro formulou 15 hipóteses sobre o que os surdos considerariam útil para a compreensão dos conteúdos da internet.

Suas hipóteses foram testadas com um grupo de 17 surdos. Os entrevistados, homens e mulheres, com idades entre 15 e 21 anos, eram alunos do curso profissionalizante para surdos do Colégio Rio Branco, em São Paulo. O domínio do português entre eles era bem diversificado, mas todos se comunicavam por Libras.

Segundo Martins, somente uma das hipóteses apresentadas, sobre o primeiro recurso usado pelos surdos diante da incompreensão de palavras em português, foi refutada. “A primeira opção dos surdos não é perguntar o significado para colegas e familiares, mas usar o dicionário de Libras em CD ou a internet.”

Os 17 tinham familiaridade com o computador, sendo que apenas um não tinha um em casa. Durante as entrevistas, afirmaram que usam mais a internet para se informar, acessar redes sociais e buscar imagens para entender palavras do que os dicionários de Libras.

Entrevistados afirmaram que usam mais a internet para se informar, acessar redes sociais e buscar imagens para entender palavras do que os dicionários de Libras

Com os dados colhidos nas conversas com os jovens surdos, definiu-se junto com eles o que seria bom e ruim na interface dessa comunidade com a internet e foi desenvolvido um protótipo da ferramenta. “Não adianta você construir algo que não será usado”, ressalta.

Apesar de já ter concluído o mestrado, o engenheiro ainda trabalha no incremento da ferramenta e batalha para torná-la uma realidade disponível aos surdos. “Agora precisamos montar uma equipe para o desenvolvimento do código que o levará para a rede”, explica.

Ferramentas semelhantes à Claws já são usadas em outros países, mas não oferecem tanta autonomia aos usuários, pois os recursos de tradução e associação de conteúdo não são buscados pela própria interface. “Acredito que oferecer tudo na mesma ferramenta seja o grande diferencial e a facilidade acelera o processo de entendimento”, avalia Filgueiras, que lamenta as escassas iniciativas voltadas à comunidade surda no Brasil.

Camille Dornelles
Ciência Hoje On-line