O desenvolvimento do câncer de mama e da leucemia mielóide aguda pode estar associado a variações de determinados genes que ocorrem com certa freqüência em indivíduos de uma população e são responsáveis por sua variabilidade genética. Dois estudos realizados na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) mostraram que formas variantes desses genes, conhecidos como polimórficos, são mais freqüentes em pacientes com essas doenças do que em pessoas saudáveis.
Segundo a médica Carmen Silvia Passos Lima, que orientou as duas pesquisas, realizadas na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, os genes polimórficos apresentam formas que variam de indivíduo para indivíduo e são herdados dos pais. A forma mais comum do gene é chamada de selvagem, enquanto a mais rara é dita variante. Esses genes determinam características físicas, como a cor dos olhos e dos cabelos.
Por outro lado, há genes polimórficos que atuam no metabolismo de substâncias tóxicas, na formação de vasos sangüíneos para a irrigação de células, entre outras funções. As duas formas desses genes – selvagem e variante – agem distintamente nas funções metabólicas das células, podendo ser mais ou menos ativas dependendo do gene. Por isso, a capacidade de atuar no metabolismo de agentes químicos também varia de acordo com o indivíduo, o que faz com que portadores tanto da forma selvagem como das variantes dos genes possam estar expostos a riscos diferentes de câncer.
As imagens de mamografia acima mostram um seio normal, à esquerda, e um atingido pelo câncer, à direita (foto: NIH).
No caso do câncer de mama, o biólogo Gustavo Jacob Lourenço estudou em seu mestrado o papel do gene polimórfico COL18A1, responsável pela formação de vasos sangüíneos, na ocorrência da doença. Enquanto a forma selvagem desse gene (104D) produz uma proteína que inibe a produção de vasos sangüíneos, sua forma variante (104N) não é tão eficiente nessa função.
“É importante ressaltar que, quanto mais vasos sangüíneos forem produzidos, mais o tumor será alimentado e, como conseqüência, tenderá a crescer com mais facilidade”, explica Lima. “Por outro lado, quanto menos vasos houver, menor será o risco de esse câncer se desenvolver.”
Para a pesquisa, o biólogo avaliou 181 mulheres com câncer de mama e 300 mulheres saudáveis da mesma região. Apenas a forma selvagem do gene foi encontrada em mulheres saudáveis. Já entre as doentes, cerca de 5% possuíam a forma variante. “Esse percentual parece pouco expressivo”, avalia Lima. “Mas ele deve ser visto como um forte indício da relação entre a forma variante do gene e a ocorrência da doença, uma vez que a forma variante não foi encontrada em mulheres saudáveis.”
Genes polimórficos e exposição a agentes químicos
Na pesquisa sobre leucemia mielóide aguda, a aluna de iniciação científica do curso de medicina Gabriela Góes Yamaguti avaliou os papéis dos genes polimórficos NQO1 e CYP1A, que atuam de forma distinta no metabolismo de agentes químicos, como os hidrocarbonetos aromáticos policíclicos (HAP), para o risco de ocorrência da doença. A aluna e seus colaboradores observaram as freqüências das formas distintas dos genes em 133 pacientes com leucemia mielóide aguda e em 133 indivíduos saudáveis.
Lima esclarece que os HAP estão presentes na combustão do tabaco, na gasolina e no querosene, entre outras substâncias, e podem levar ao desenvolvimento de câncer em células da medula óssea. “O gene NQO1 produz uma proteína que inativa os HAP. Já o CYP1A1 é responsável pela síntese de uma proteína que transforma os HAP em substâncias ainda mais tóxicas”, aponta a médica. “No primeiro caso, a forma variante do gene apresenta capacidade menor de inativar esses agentes químicos do que a forma selvagem. Na segunda situação, percebemos que a forma variante torna mais intensa a atividade do gene CYP1A1 e, assim, substâncias de maior toxicidade passam a circular no organismo”, completa.
A imagem acima acusa a presença de leucemia mielóide aguda em células da medula óssea (foto: Wikimedia Commons).
Os pesquisadores encontraram as formas variantes de ambos os genes com mais freqüência nos pacientes com leucemia mielóide aguda do que nos indivíduos saudáveis. Assim, os portadores das formas variantes dos genes apresentaram risco 12 vezes maior de desenvolver a doença do que aqueles com as formas selvagens.
Lima espera que as pesquisas chamem a atenção para o fato de que características herdadas podem alterar o risco de determinados tipos de câncer e seu conhecimento pode auxiliar na criação de estratégias de prevenção dessas doenças. “Com o estudo sobre câncer de mama, percebemos a importância de, uma vez identificada a forma variante do gene COL18A1 na mulher, monitorá-la pelo resto de sua vida, para detectar a doença precocemente, caso ocorra”, avalia. “Com o outro trabalho, conseguimos identificar grupos de indivíduos que não devem, em qualquer hipótese, entrar em contato com os HAP, quer do meio ambiente quer no hábito de fumar.”
Agora os pesquisadores pretendem coletar amostras de sangue de várias capitais brasileiras, como Porto Alegre, Rio de Janeiro, Goiânia, Brasília, Macapá, Cuiabá, Aracaju, Maceió, João Pessoa e Salvador, para saber se essas características se mantêm em outras regiões do país. “Devemos ter em mente que as freqüências das formas distintas de genes polimórficos variam de acordo com as etnias e, devido à forte miscigenação ocorrida no Brasil, é fundamental aprofundarmos os nossos estudos para verificar se os resultados obtidos em nossa região se aplicam à população brasileira”, aponta Lima.
Andressa Spata
Ciência Hoje On-line
17/03/2008