O fim do enigma dos raios cósmicos

A Centaurus A é uma das galáxias mais próximas da nossa com núcleos ativos que emitem raios cósmicos ultra-energéticos (foto: Nasa/ESA/Hubble).

Um grande enigma que intrigava físicos de todo o mundo acaba de ser solucionado: a origem dos raios cósmicos de extrema energia, as partículas mais energéticas conhecidas pela ciência. Observações feitas por cientistas da Colaboração Pierre Auger, que reúne mais de 70 instituições de 17 países – inclusive o Brasil –, mostram que esses raios cósmicos vêm de fontes localizadas em galáxias próximas à nossa dotadas de núcleos ativos, alimentados por buracos negros gigantes que engolem grandes quantidades de matéria ao seu redor e cospem partículas e energia.

Os raios cósmicos são núcleos atômicos que viajam pelo universo a velocidades próximas à da luz e atingem a Terra. Ao penetrar a atmosfera terrestre, eles colidem com núcleos de moléculas que formam o ar e geram uma cascata de partículas secundárias chamadas chuveiros atmosféricos, que podem se espalhar por mais de 40 km 2 ao atingir o solo.

Esses raios são classificados em três grupos: pouco energéticos, de energia moderada e ultra-energéticos. Os raios cósmicos de mais alta energia são 100 milhões de vezes mais energéticos do que qualquer partícula produzida pelo mais poderoso acelerador da Terra. Esse fenômeno é raro – seu fluxo é de cerca de um por km 2 por século – e sua origem ainda era desconhecida. Raios cósmicos de baixa energia são abundantes e vêm de todas as direções do céu, a grande maioria da nossa galáxia.

A descoberta da fonte dos raios ultra-energéticos, publicada na revista Science desta semana, foi feita a partir de dados coletados no Observatório Pierre Auger, localizado no oeste da Argentina. A instalação tem uma rede de 1,6 mil detectores de partículas, separados uns dos outros por 1,5 km e dispostos em uma área de 3 mil km 2 (o equivalente a três vezes o município do Rio de Janeiro).

A esses detectores terrestres somam-se quatro estações, cada uma com seis telescópios especiais, que registram a emissão da luz fluorescente gerada pela passagem dos raios cósmicos pela atmosfera terrestre. A combinação dos métodos permite aos pesquisadores medir de forma mais exata a energia dos raios cósmicos e elucidar a identidade das partículas de alta energia.

Um milhão de eventos

O Observatório Pierre Auger, na Argentina, identifica raios cósmicos que atingem a Terra por meio de detectores terrestres, como o mostrado na foto, e telescópios especiais, que registram a emissão da luz fluorescente gerada pela passagem dessas partículas pela atmosfera (foto: Observatório Pierre Auger).

O Observatório conseguiu detectar cerca de um milhão de chuveiros atmosféricos de janeiro de 2004 a agosto de 2007, segundo o físico brasileiro Ronald Shellard, pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e co-presidente do Conselho da Colaboração Pierre Auger.

Dentre eles, 81 tinham energia acima de 40 x 10 19 eV (elétron-volt), quantidade maior do que a coletada por qualquer observatório no mundo. Esses raios cósmicos mais energéticos, ao contrário dos de menor energia, são menos sensíveis aos campos magnéticos galácticos e intergalácticos e apresentam uma trajetória em linha reta, que permite identificar a direção de onde partiu o raio cósmico primário com imprecisão de apenas cerca de um grau.

Os pesquisadores selecionaram os 27 eventos de mais alta energia (acima de 57 x 10 19 eV) e verificaram que suas fontes não estavam distribuídas uniformemente no céu. Suas direções de partida foram então correlacionadas com as localizações de 381 núcleos ativos de galáxias (AGNs, na sigla em inglês) conhecidos.

Os resultados mostram que a maioria dos raios cósmicos que alcançam a Terra nessa faixa de energia são prótons vindos de AGNs ou objetos de distribuição espacial similar. Shellard, um dos autores do artigo, foi enfático ao interpretar o resultado: “Provamos de forma inequívoca que os raios cósmicos de energias mais altas são produzidos nas regiões de AGNs.” Quase todos esses eventos vêm de galáxias próximas à Via Láctea, a poucas centenas de milhões de anos-luz da Terra.

Os raios ultra-energéticos vindos de galáxias mais distantes perdem energia antes de atingir a Terra, porque interagem com a radiação cósmica de fundo – radiação herdada do Big Bang que preenche todo o espaço. Segundo Shellard, o fato de raios ultra-energéticos vindos de galáxias mais distantes não terem sido detectados evidencia a existência do chamado efeito GZK. Esse efeito, formulado teoricamente em 1966, descreve a perda de energia que esses raios sofrem ao atravessar a radiação cósmica de fundo.

“Esse experimento é certamente uma das mais importantes descobertas da ciência em 2007”, avalia Shellard. A descoberta da origem dos raios cósmicos ultra-energéticos inaugura uma nova era da astronomia, em que essas partículas – em vez da luz – poderão ser usadas para mapear o universo. Mas ainda há muito o que se descobrir sobre elas: o mecanismo responsável por sua aceleração e sua extrema energia permanece misterioso e representa o próximo desafio para os estudiosos dessa área.

Thaís Fernandes
Ciência Hoje On-line
08/11/2007