O futuro em jogo

Uma verdadeira novela que se arrasta há três anos na justiça brasileira está próxima do fim. Nesta quarta, dia 28, o Supremo Tribunal Federal (STF) reinicia o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade do artigo da Lei de Biossegurança, aprovada em 2005, que autoriza pesquisas com células-tronco embrionárias humanas. A sessão anterior, realizada em 5 de março, foi suspensa após o pedido de vista do ministro Carlos Alberto Menezes Direito.

Sede do Supremo Tribunal Federal em Brasília (foto: STF).

A ação foi proposta pelo ex-procurador-geral da República Cláudio Fonteles, em maio de 2005. O ministro relator Carlos Ayres Britto e ministra Ellen Gracie, presidente da corte na época do início do julgamento, votaram pela constitucionalidade das pesquisas. O 5º artigo da lei permite que embriões congelados há mais de três anos ou inviáveis para a implantação em útero sejam usados em pesquisas cientificas, desde que haja o consentimento dos pais. (Leia a análise de Renato Lessa sobre o papel do STF nessa decisão de caráter técnico-científico.)

Os defensores das pesquisas com células-tronco embrionárias enxergam nelas uma esperança de cura para doenças como mal de Parkinson, diabetes e artrose e de recuperação das seqüelas surgidas em conseqüência de lesões na medula espinhal e acidentes vasculares cerebrais. Porém, os estudos feitos com essas células em alguns países estão em seus primeiros passos, longe ainda de oferecer perspectivas concretas de cura ou melhoria para esses pacientes.

A demora no julgamento atrasa pesquisas sobre o tema em andamento. Para alguns pesquisadores, esse fator poderia tornar o Brasil defasado em relação a outros países no desenvolvimento de novas biotecnologias. “O atraso do Brasil em relação aos países do Primeiro Mundo pode nos tornar meros expectadores. No futuro, o país terá que importar essas novas tecnologias e, para isso, pagará uma fortuna”, avalia a geneticista Mayana Zatz, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP).

Alta capacidade de diferenciação
O potencial terapêutico das células-tronco de origem embrionária reside em seu alto poder de diferenciação – elas são classificadas como totipotentes ou pluripotentes, ou seja, podem se converter em vários tipos de tecidos. “As células-tronco embrionárias são o tipo mais versátil, e ao estudá-las, aprendemos muito sobre a biologia humana”, afirma a geneticista Lygia da Veiga Pereira, também do Instituto de Biociências da USP. “É preciso concentrar mais esforços para que não haja uma lacuna, um buraco negro, em relação ao desenvolvimento das pesquisas.”

Blastocisto humano de cinco dias. O aglomerado de células à esquerda é a fonte das células-tronco embrionárias, capazes de gerar neurônios, células cardíacas, cutâneas e de outros tecidos (foto: Centro Avançado de Fertilidade de Chicago, EUA).

O grande obstáculo para o uso das células-tronco embrionárias em pesquisas é o fato de sua extração acarretar a morte do embrião, o que leva muitos a enxergarem impedimentos éticos para tais estudos. Os que condenam as pesquisas alegam que a prática seria equivalente a um aborto, proibido por lei. Cientistas e pesquisadores afirmam, porém, que o embrião não tem qualquer resquício de célula nervosa nos primeiros 14 dias de gestação – período em que ocorreria a extração das células-tronco (leia um artigo de Roberto Lent sobre quando começa a vida humana).

Os opositores afirmam ainda que a liberação das pesquisas poderia dar origem a um comércio de embriões no país, embora a Lei de Biossegurança proíba esse tipo de negociação. Além disso, cerca de 98% dos embriões congelados há mais de três anos no Brasil são inviáveis tanto para a reprodução quanto para pesquisa, segundo dados apresentados por Zatz em palestra realizada na Academia Brasileira de Ciências, em abril. Os embriões usados para pesquisa, portanto, jamais chegariam à vida adulta.

O neurocientista Stevens Rehen, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ressalta que o país já estaria em posição de desvantagem em relação a outros. “Estamos 10 anos atrasados e precisaremos correr atrás”, lamenta. “Em vários lugares do mundo já existem patentes que, caso venham a se tornar tratamentos, custarão muito caro para nós”.

Rehen destaca ainda que há poucos grupos atuando no Brasil com pesquisas sobre células-tronco. “Não há uma grande massa crítica. É preciso fomentar o aumento do número de grupos de pesquisa”, afirma. “É preciso dar liberdade às pesquisas, desde que sejam realizadas de forma ética”, completa o pesquisador, que coordena o Instituto Virtual de Células-Tronco.

Pouco potencial das células adultas
Algumas linhas de pesquisa tentam contornar as barreiras éticas ligadas ao uso das células-tronco embrionárias humanas. No Brasil e no mundo, várias iniciativas buscam usar com fins terapêuticos as células-tronco adultas, encontradas na medula óssea, no sangue, na placenta e no cordão umbilical. Resultados satisfatórios têm sido obtidos nesses estudos, mas a menor capacidade de diferenciação das células adultas restringe seu potencial terapêutico.

Um outro tipo de abordagem desenvolvida recentemente consiste na reprogramação de células-tronco adultas para que elas voltem a atuar como embrionárias. No entanto, essa técnica esbarra em obstáculos como o risco de câncer associado ao procedimento e a imperfeição do método de inserção dos novos genes usados na reprogramação.

A questão das pesquisas com células-tronco embrionárias divide a sociedade e provavelmente não será encerrada caso o resultado do julgamento seja anunciado nesta quarta. A polêmica envolve a discussão sobre quando começa a vida, questão de difícil resposta, sejam quais forem os critérios adotados. Enquanto o resultado não for anunciado, continuará incerto o futuro das pesquisas que buscam tratamentos para diversas doenças. 

Igor Waltz
Ciência Hoje On-line
27/05/2008