O melhor da cana

Se você é daqueles que não resistem a uma boa cachaça de alambique, saiba que a ciência está trabalhando a seu favor. Pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) viajaram até a Austrália para examinar as características da bebida em um equipamento ultramoderno, o que permitirá aprimorar seu processo de produção. Tudo isso para melhorar a qualidade da tradicional cachaça mineira e torná-la ainda mais saborosa.

O objetivo do estudo era comparar as variações de determinados compostos químicos de diferentes cachaças – especialmente as de fabricação artesanal – e relacioná-las aos seus processos de produção. A ideia surgiu depois que o químico Patterson Souza, que é professor do Cefet-MG e consultor científico da Associação Mineira de Produtores de Cachaça de Qualidade (Ampaq), foi questionado pelos próprios produtores sobre quais processos artesanais seriam mais benéficos.

“Como as receitas das cachaças são passadas de geração para geração, os produtores se preocupavam em manter a tradição, sem pensar em como as técnicas de produção alteravam a qualidade do produto”, conta o pesquisador, que realizou o estudo em sua tese de doutorado, sob a orientação dos professores Zenilda Cardeal e Rodinei Augusti, do Departamento de Química da UFMG. Os resultados foram publicados em março no Journal of Chromatography A.

A análise dos componentes de cachaças artesanais apontou processos de produção que alteram a qualidade da bebida (foto: Ludmila Tavares).

A cachaça é feita a partir da fermentação e posterior destilação do líquido extraído da cana-de-açúcar ou do melaço obtido na fabricação do açúcar, mas o processo de produção pode variar. Para a pesquisa, foram analisadas amostras de 50 cachaças artesanais e quatro industriais, todas fabricadas em Minas Gerais.

Os testes mostraram que a cachaça artesanal bidestilada, produzida em alambique, conserva melhor os compostos de sua matéria-prima. Elas têm grande concentração de ésteres e alcoóis, que garantem à bebida aroma e sabor característicos.

Um dos métodos avaliados pelos pesquisadores consiste em passar a bebida depois de fabricada em uma resina para eliminar íons cobre que resultam do processo de destilação da cana e que poderiam aumentar a concentração de carbamato, composto cancerígeno. “Muitos produtores usam apenas essa técnica e alguns a complementam com uma filtragem em carvão”, diz Souza.

A análise mostrou que o uso da resina agrega à cachaça compostos nocivos (chamados ftalatos), que podem provocar irritações na garganta e até câncer. “O interessante é que o filtro de carvão retira os compostos nocivos sem alterar o sabor da bebida”, conclui o químico.

Técnica pouco conhecida
Para fazer a análise, os químicos usaram uma técnica ainda pouco conhecida na América Latina – chamada cromatografia bidimensional abrangente –, que permite separar e identificar os componentes da cachaça. Os testes foram realizados no Instituto de Tecnologia Real de Melbourne, na Austrália, onde fica o maior núcleo de cromatografia multidimensional do mundo.

Souza explica que o estudo não poderia ser feito sem o uso dessa técnica, pois a cachaça é uma bebida muito complexa, com uma enorme variedade de componentes. “Em relação ao aroma, a cachaça brasileira é muito superior ao uísque”, compara. “Já a vodca e o rum são bebidas menos ricas.”

O equipamento usado pelos pesquisadores tem duas colunas, que separam os compostos voláteis da substância analisada em função de seu número de carbonos e, depois, da distribuição das cargas elétricas em volta de suas moléculas (polaridade). “No processo convencional, a solução só passa pela primeira coluna, o que permite identificar no máximo 30 componentes”, explica Souza. “Já a cromatografia bidimensional pode separar matrizes mais complexas, pois tem um poder de resolução mil vezes maior.”

Essa técnica, no entanto, ainda é pouco difundida. O Brasil é um dos poucos países da América do Sul onde existe pessoal capacitado para realizar a análise. Minas Gerais é o estado brasileiro com a maior concentração de especialistas nessa técnica, com três pesquisadores com especialização no exterior.

Os pesquisadores brasileiros agora aguardam financiamento para a criação do Centro Mineiro de Cromatografia Avançada. Além da análise de bebidas, a técnica também pode ser usada na identificação de pesticidas em alimentos e no estudo dos componentes de medicamentos.

Barbara Marcolini
Ciência Hoje On-line
24/04/2009