O mito da democracia racial posto à prova

A baiana do acarajé proprietária de um grande restaurante e o dono da empresa de táxi aéreo de Salvador representam uma classe média negra que ascendeu socialmente em meio a um mercado de trabalho que ainda conserva traços de discriminação racial. Eles fazem parte do grupo entrevistado pela cientista social Ângela Figueiredo em sua tese de doutorado defendida em janeiro no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj).

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A pesquisa buscou entender a forma como os empresários negros baianos percebem os limites impostos pela sociedade no exercício de sua profissão e a trajetória de mobilidade social desses indivíduos. Segundo Ângela, falta aos estudos brasileiros a preocupação com o impacto da discriminação racial no mercado de trabalho sob a ótica dos próprios discriminados. Para ela, é emblemático o panorama oferecido em Salvador: além de a cidade ser conhecida por sua tradição afro-brasileira, a Bahia é o estado com o maior percentual de empregadores negros do país (13,5%).

Em um primeiro momento foram realizadas entrevistas com 30 empresários negros bem-sucedidos de diversos ramos em Salvador. “Analisar o caso dos profissionais que alcançaram postos de trabalho historicamente não ocupados por negros permite uma melhor compreensão dos conflitos existentes”, considera Ângela.

Foram levados em conta dados sobre a escolaridade e trajetória dos entrevistados, além de aspectos relativos ao empreendimento — escolha do ramo de atividade, capital inicial para montar o negócio e critérios para contratação dos funcionários. Com base nas respostas e na análise de estatísticas do IBGE, a pesquisadora constatou, por exemplo, que o empresário negro médio possui o primeiro grau incompleto e é filho de trabalhadores manuais ou agrícolas.

Uma de suas hipóteses iniciais era que a formação dos empreendimentos representaria uma estratégia de mobilidade social desvinculada da exigência de instrução formal. “Embora indivíduos com baixa escolaridade tenham conseguido abrir negócios, o estudo aponta uma relação estreita entre escolaridade e o tamanho do empreendimento”, diz Ângela.

Segundo a pesquisadora, a origem humilde determina dificuldades logísticas para se iniciar o empreendimento e sua forma de gerenciamento. São indivíduos que não contam com o apoio financeiro dos parentes ou com uma tradição qualquer nos negócios, na medida em que são em geral os primeiros de sua família a ascender na hierarquia social.

Ângela verificou que os entrevistados identificam o racismo no dia-a-dia, em situações como reuniões de negócios em que os empresários negros são recebidos com surpresa por novos clientes. No entanto, nem sempre os obstáculos enfrentados são vinculados à discriminação: dificuldades impostas no acesso ao crédito, por exemplo, são atribuídas à burocracia, e não ao racismo.

“Com o crescimento da classe média negra, o mito da democracia racial é posto à prova”, afirma Ângela. “Ao alcançarem esses postos de trabalho, os indivíduos percebem que não se trata de um preconceito de classe.”

Fábia Andérez
Ciência Hoje On-line
12/09/03