O patinho feio e a aposta nuclear

Dois anos depois de Fukushima, muito ainda se discute sobre os rumos dos programas nucleares. Apesar da reticência de alguns países europeus, há muitas iniciativas que seguem apostando firme no setor. A tragédia japonesa, no entanto, teve ao menos um lado positivo: serviu para aprimorar procedimentos de segurança por todo o mundo, inclusive nas usinas brasileiras. 

Carneiro: “Era preciso decidir se Fukushima seria tratado como um ‘patinho feio’ ou se deveria ser realizada uma revisão geral da segurança das usinas do mundo”

O tema foi discutido por especialistas, membros da sociedade civil e representantes dos órgãos nacionais ligadas ao setor reunidos no 2º Seminário sobre Energia Nuclear, realizado na semana passada, no Rio de Janeiro. Para o coordenador do Comitê Gerencial de Resposta ao Acidente de Fukushima da Eletrobrás Eletronuclear, Paulo Carneiro, o desastre japonês colocou governos e empresas do setor numa encruzilhada: “Era preciso decidir se Fukushima seria tratado como um ‘patinho feio’ ou se deveria ser realizada uma revisão geral da segurança das usinas do mundo, opção que acabou prevalecendo”, afirmou. 

Assim, diversos países do mundo implementaram rígidos testes (stress tests) em suas instalações, para reavaliar ameaças, margens de segurança, procedimentos de emergência e até a capacidade de contenção dos reatores em caso de acidentes graves. “A exigente avaliação obrigou mais da metade das usinas europeias a rever práticas e investir ainda mais em segurança”, observou Carneiro. “Até nos EUA, que havia realizado testes semelhantes contra sabotagem, também eram necessárias melhorias.”

O caso brasileiro

Na lista dos piores acidentes nucleares da história, Fukushima figura entre os três primeiros lugares, ao lado de outros ocorridos em Three Mile Island, nos Estados Unidos, em 1979, e em Chernobyl, na ex-União Soviética, em 1986. O engenheiro nuclear Aquilino Serra Martinez, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, explicou as grandes diferenças entre os três casos e entre seus respectivos reatores, ressaltando que os utilizados no Brasil só se assemelham ao do acidente de 1979.

Three Mile Island
Acidente ocorrido na usina de Three Mile Island em 1979 foi o único dentre os três maiores desastres atômicos com um reator semelhante aos utilizados no Brasil. Episódio serviu para aumentar as margens de segurança das instalações em todo o mundo. (imagens: Wikimedia Commons)

“O acidente em Three Mile Island, no entanto, teve relação direta com o fator humano”, explicou Martinez. “Depois dele, diversas modificações foram feitas para tornar o reator mais automático, o que diminuiu a dependência do operador – todas elas incorporadas nas usinas que temos hoje.”  

Martinez destaca falhas em Fukushima: equipamentos de emergência mal alojados, contenção do reator mal dimensionada e combustível queimado guardado em área pouco protegida

Sobre o caso japonês, ele destacou falhas no projeto da usina: com o risco de inundação, equipamentos para evitar acidentes graves estavam mal alojados, a contenção do reator não era bem dimensionada e o combustível queimado era guardado em área pouco protegida. “Mas é bom lembrar que só uma das quatro centrais nucleares atingidas teve problemas; a evacuação da área foi muito bem-sucedida”, destacou. “As mortes e os estragos por lá foram causados não pelo reator, mas pelo terremoto e pelo tsunami.” 

Ao comparar Fukushima com as instalações nacionais, Martinez reforçou a confiança na segurança de Angra dos Reis. “Os reatores brasileiros são mais protegidos em caso de vazamento do núcleo, com equipamentos de segurança e piscinas de combustível em áreas menos suscetíveis”, avaliou. “Além disso, a usina localiza-se numa área de baixa sismicidade e dentro de uma baía, protegida das grandes ondas.”

(In)segurança em Angra

Seguindo o procedimento internacional, no entanto, o Brasil também reavaliou suas instalações após Fukushima. Localizadas entre a serra e o mar, as maiores ameaças são os deslizamentos e as chuvas da região. “Revimos procedimentos e redimensionamos margens de segurança relacionadas a inundações, desmoronamentos, incêndios, ondas e até tornados”, contou Carneiro. No total, o plano de resposta à Fukushima, produzido pela Eletronuclear em 2012, propõe mais de 50 medidas, algumas já implantadas. 

Centrais de Angra
Localizadas entre o mar e a montanha, as centrais nucleares de Angra têm como maiores ameaças inundações e deslizamentos comuns na região. Apesar de reavaliações de segurança pós-Fukushima, plano de evacuação continua sendo alvo de críticas. (foto: Flickr/PAC 2 – CC BY-NC-SA 2.0)

Mesmo assim, muitos participantes do evento levantaram uma questão polêmica no plano de segurança: os procedimentos de evacuação da região. “O plano de emergência é uma abstração. Por exemplo, os deslizamentos frequentes de encostas cortam as rotas de fuga, como a BR101”, avaliou o engenheiro agrônomo José Rafael Ribeiro, conselheiro da Sociedade Angrense de Proteção Ecológica. “Além disso, ele se concentra principalmente numa área de 5km ao redor da usina, boa parte da população não é contemplada. Em síntese, o plano é acreditar que aquilo ali nunca vai vazar.”

Ribeiro:  “Em síntese, o plano é acreditar que aquilo ali nunca vai vazar”

Ribeiro também citou duas situações de alarme falso, em que as sirenes de alerta soaram no distrito próximo à usina. Segundo ele, na primeira delas, em 1989, houve pânico. Na segunda, em 2009, nenhuma mobilização. “Não sei qual das duas situações é pior. O que fica óbvio é que, 20 anos depois, a população ainda não sabe reagir numa emergência”, avaliou. 

O engenheiro Paulo Gonçalves, assessor da Eletronuclear na área de responsabilidade socioambiental e comunicação, que apresentou diversas iniciativas ‘responsáveis’ da empresa na região, afirmou que a estatal investe em meio ambiente, saúde e educação, como determina a legislação. Porém, ressaltou que os projetos devem ser elaborados pela sociedade civil e pelo poder público. Ribeiro reforçou: “Os governos municipal, estadual e federal precisam envolver a população de forma orgânica”. 

Desaceleração e vidas prolongadas

Outro ponto muito debatido no evento foi a moratória à energia nuclear proposta pela Alemanha. Dados da Agência Internacional de Energia Atômica parecem mostrar que o movimento não tem tido grande sucesso. Afinal, hoje existem 67 reatores em construção no mundo e as previsões sugerem a criação de 90 nos próximos 20 anos. “Além disso, apesar de cerca de 80% dos reatores em uso já terem ultrapassado metade de suas vidas úteis de 40 anos, quase todos os países estão estendendo esse tempo por mais 20 anos e aumentando a potência dos equipamentos”, afirmou Paulo Carneiro.

Usinas nucleares
Enquanto a Alemanha ensaia abandonar a energia nuclear, países como China e Índia mergulham cada vez mais na tecnologia. Especialistas brasileiros apoiam investimento, mas alertam que chance de acidentes nunca será nula. (foto: Flickr/ Mary.Do – CC BY-NC-ND 2.0)

A própria Alemanha havia feito o mesmo antes de Fukushima, ampliando a vida de suas usinas para 2036. “Além disso, é curioso que o país que prega essa moratória mantém centenas de ogivas atômicas em seu território”, argumentou. “É claro que a preocupação com segurança é fundamental, mas nenhuma tecnologia é 100% segura e é impossível dizer que não haverá mais acidentes; o importante é estarmos preparados”, afirmou. 

Para Carneiro, o risco nuclear deveria ser relativizado quando comparado com outras formas de energia. “Cerca de 40% da energia do mundo é termelétrica, onde o dano é permanente durante todo o seu período de operação”, destacou. “A energia nuclear foi importante para atender o crescimento da demanda dos países europeus. Agora eles querem impedir os países em desenvolvimento de utilizar esse recurso”, questionou.

Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line