Os tabus põem a mesa

null

Família pertencente a uma das comunidades estudadas na margem do rio Tocantins, em foto de 1987 (fotos: Alpina Begossi)

Tabus alimentares fazem parte de várias culturas e religiões. No Brasil não é diferente: há 15 anos, as restrições e recomendações ao consumo de peixes em populações da Mata Atlântica e da Amazônia têm sido estudadas por uma equipe de biólogos e ecólogos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Parte dos resultados desse esforço foi sistematizada em um artigo publicado em outubro da revista Ecological Applications

.

 

A equipe, constituída por Natalia Hanazaki e por Rossano M. Ramos e liderada pela bióloga Alpina Begossi, do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam), reuniu informações sobre consumo de peixes nas populações ribeirinhas dos rios Araguaia, Tocantins, Juruá e Negro (região amazônica) e no litoral de São Paulo e Rio de Janeiro (Mata Atlântica). O estudo busca explicar o que está por trás de restrições alimentares nesses grupos a partir de entrevistas com famílias das comunidades pesquisadas e da revisão de material bibliográfico sobre o tema.

 

Na análise bibliográfica, a equipe remonta à Bíblia para rastrear a origem dos tabus alimentares. Foram encontradas no livro Levítico

restrições ao consumo de peixes marinhos sem escamas e nadadeiras, fundamentadas na idéia de pureza. Uma hipótese levantada pelo grupo da Unicamp é que esse tabu tenha sido passado aos indígenas pelos portugueses na época da colonização ‐ ambos são os principais ascendentes dos atuais habitantes das áreas estudadas.

 

O grupo avaliou também a obra publicada pela antropóloga Mary Douglas nos anos 1960 para entender a origem das restrições ao consumo de certas espécies de peixe. Os tabus podem ter surgido em função da preocupação com a preservação de recursos naturais ou da rejeição a peixes gordurosos. Fatores locais podem ainda ter determinado o surgimento dessas restrições.

 

null

Ponta do Almada, no litoral de SP, onde vive uma das 18 comunidades estudadas na Mata Atlântica

A equipe de Begossi relacionou os tabus alimentares de cada comunidade com fatores ecológicos, como hábitos alimentares dos peixes e sua posição na cadeia alimentar. Isso ajudaria a explicar por que a ingestão de um determinado peixe é total ou parcialmente proibida ou recomendada, conforme o estado de saúde da pessoa.

 

Os resultados mostraram que os peixes piscívoros, normalmente classificados como ’reimosos’ ou ’carregados’, são rejeitados nas 18 comunidades da Mata Atlântica e na maioria das localidades da região amazônica estudadas. “Esses peixes estão no topo da cadeia alimentar e, por isso, poderiam acumular toxinas capazes eventualmente de causar algum mal aos consumidores”, explica Begossi. “Isso pode estar associado ao surgimento da restrição a essas espécies, especialmente no caso de pessoas doentes.”

 

A preferência por espécies localizadas em posições mais baixas da cadeia alimentar é também mostrada pela recomendação a pessoas doentes ‐ inclusive a parturientes e mulheres menstruadas ‐ dos peixes que se alimentam de algas e detritos, tanto na região amazônica, quanto nas comunidades da Mata Atlântica.

 

No entanto, Begossi ressalta ainda que faltam dados que comprovem a relação química entre o consumo de piscívoros e os malefícios a quem o ingere. Segundo a bióloga, a ausência de informações pode ser creditada em parte a um sistema deficiente de atendimento médico. “Se um pescador passa mal, muitas vezes não se sabe ao certo se é por conta de algum peixe que comeu.”


Aline Gatto Boueri
Ciência Hoje On-line
23/11/04