Como Louis Pasteur e Robert Koch fariam suas descobertas pioneiras em patologia sem estudar cadáveres humanos? E como seria avaliado o impacto de doenças como a Aids e a Influenza A H1N1 no organismo? Apesar da importância da autópsia para o avanço do conhecimento científico, registra-se uma queda significativa no número de exames post mortem no mundo todo. Uma pesquisa britânica, que avaliou a utilização de exames de imagem em substituição aos métodos tradicionais, pode ajudar a reverter essa tendência.
A equipe liderada pelo pesquisador Ian Roberts, do Hospital John Radcliffe, de Oxford, na Inglaterra, comparou a eficácia do uso de exames de ressonância magnética e tomografia computadorizada para determinar a causa da morte de 182 pessoas entre 2006 e 2008.
O primeiro método utiliza ondas de rádio para analisar os tecidos, enquanto o segundo obtém imagens de ‘fatias’ do corpo a partir da combinação de radiografias realizadas de diferentes ângulos.
Os corpos foram submetidos aos exames para determinar a causa da morte e os casos inconclusos, que pediriam procedimentos adicionais. A comparação dos resultados com os obtidos pela autópsia tradicional, realizada em seguida, mostrou discrepâncias em 32% das tomografias e 43% das ressonâncias.
Nos diagnósticos em que foi descartada a necessidade de uma autópsia complementar (34% e 42% do total para tomografias e ressonâncias), a discrepância apresentada foi de apenas 16% e 21% em relação ao método tradicional, respectivamente.
Imagens na prática
Em especial no caso das tomografias, a taxa já seria suficiente, segundo os cientistas, para a utilização da metodologia na prática. O maior problema seria na associação das mortes a doenças cardíacas, uma dificuldade apontada na pesquisa. Por outro lado, os procedimentos de imagem conseguiram identificar certas patologias intracranianas e casos de pneumotórax mais facilmente do que a autópsia.
Segundo Roberts, os custos também não impediriam a adoção das técnicas em longo prazo. A autópsia se tornaria mais rápida e máquinas antigas poderiam ser reaproveitadas.
Ainda assim, Roberts defende que as imagens não substituam a autópsia tradicional, mas que a complementem. “Com uma tomografia inicial, poderemos obter mais dados sobre as mortes do que temos hoje, reduzir o número de autópsias e melhorar a qualidade das que precisam ser realizadas”, avalia.
Saúde pública, pesquisa e ensino
O estudo mostra que em 2007 foram realizadas autópsias em 22% das mortes registradas no Reino Unido, mas destaca a baixa qualidade de muitas delas e a diminuição das autópsias consentidas, com maior finalidade científica, em relação às médico-legais, que visam emitir laudo com a causa da morte.
Entre os fatores relacionados à essa redução, os pesquisadores destacam a qualidade dos exames disponíveis para os pacientes, que teriam diminuído o interesse médico em investigações adicionais, além de questões religiosas.
O patologista Vicente Teixeira, da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), destaca que a tendência também se repete no Brasil, onde a autópsia só é obrigatória em casos de morte violenta ou suspeita (sem razões aparentes).
“No hospital universitário, fazíamos centenas de autópsias consentidas por ano e hoje são menos de 100”, compara. “Questões religiosas, legais, o tempo necessário para o procedimento e até o medo do tráfico de órgãos têm impactado nessa redução”, avalia.
A diminuição do número de autópsias tem impactos na pesquisa e no ensino. Além disso, o procedimento é uma fonte rica de dados para a construção de indicadores epidemiológicos em saúde pública.
Teixeira acredita que o uso de técnicas imagéticas possa ajudar a aumentar os dados disponíveis. “A qualidade desses procedimentos é muito alta e, por serem mais rápidos e menos invasivos, poderíamos superar algumas das barreiras à realização da autópsia tradicional, em especial as religiosas”, afirma.
O pesquisador destaca, no entanto, a importância da autópsia tradicional e aposta em abordagens humanizadas para lidar com a dor das famílias. “O estudo dos corpos fornece informações preciosas sobre os efeitos das doenças no homem”, afirma. “É preciso preparar os médicos para dialogar com os familiares nesse momento delicado, para explicar a importância e a segurança do procedimento”, conclui.
Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line