Por trás de um discurso sustentável

O discurso de sustentabilidade que cerca o uso do etanol brasileiro esconde um processo produtivo nem sempre sustentável do ponto de vista social. Além de abrigar condições de trabalho degradantes, as lavouras de cana-de-açúcar destinadas à produção do combustível exploram a mão-de-obra de homens que migram todos os anos de comunidades do sertão mineiro e de outras regiões do Brasil para fugir do desemprego.

Além de abrigar condições de trabalho degradantes, as lavouras decana-de-açúcar destinadas à produção de etanol exploram amão-de-obra

Com o objetivo de acompanhar as rotinas dessas comunidades, a geógrafa Lúcia Cavalieri partiu em 2005 da rodoviária do Tietê (SP) para o Vale do Jequitinhonha (MG). Um mapa e alguns contatos de trabalhadores eram os únicos dados de que dispunha sobre seu local de destino.

A condição desses migrantes temporários e suas famílias – que geralmente permanecem na região – foi tema da tese de doutorado de Cavalieri, concluída em agosto de 2010 na Universidade de São Paulo. A pesquisadora percorreu durante quatro meses duas comunidades do município de Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha, na tentativa de investigar como a migração para as lavouras interfere no que ela chama de reprodução social desses grupos, ou seja, na forma como eles se organizam socialmente e reproduzem essa estrutura ao longo do tempo.

“Na década de 1960, surgiram na região fazendas de gado e eucalipto, que dispensam a mão-de-obra humana”, explica a geógrafa. “Desde então, a alternativa para o desemprego e a transferência definitiva para a cidade passou a ser a migração temporária dos homens para as lavouras de cana destinadas à produção de etanol.”

Gado
Fazendas de gado começaram a expulsar o trabalhador do sertão já na década de 1960. Desde então, a alternativa para o desemprego passou a ser a migração temporária para as lavouras de cana destinadas à produção de etanol. (foto: Lúcia Cavalieri)

O grande obstáculo dessa opção é, até hoje, a precariedade das condições de trabalho. Superexposição ao sol, falta d’água, de higiene e de equipamentos adequados foram os problemas registrados com maior frequência nos alojamentos dos cortadores pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo até 2010.

Há também os salários baixos, que ainda são pagos por produção diária, e não por jornada. Descontados os gastos com alimentação, alojamento, transporte e as reservas enviadas às famílias, sobram cerca de 200 reais por mês para os trabalhadores sobreviverem. Essa situação exige que um trabalhador corte de 10 a 12 toneladas de cana por dia, sobrecarga que leva alguns deles à morte por exaustão.

Comunidades afetadas

Para avaliar a influência da migração nas relações entre o cortador e sua família e na organização social mantida por essa parcela do campesinato, Cavalieri acompanhou os grupos estudados em dois momentos: quando os homens partiam e quando voltavam do corte. “As famílias me abrigavam em suas casas”, conta a geógrafa. “Essa forma de pesquisar me permitiu vê-las no seu dia a dia e acompanhar a dinâmica da comunidade.”

Na ausência dos homens, mulheres e crianças que permaneciam na região acabavam tendo que trabalhar para complementar a renda familiar – na venda de cosméticos e lenha, na roça e fazendo faxina. Além disso, as mulheres ainda tinham que cultivar sua própria roça e cuidar de seus filhos.

Cavalieri observou que o tempo que os homens passam longe é um desafio para as famílias e, muitas vezes, resulta na sua desestruturação. “Nesses lugares, a depressão é, junto com doenças comuns em áreas sem saneamento, um caso de saúde pública.”

Município de Araçuaí
Cidade baixa do município de Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha (MG). A pesquisadora acompanhou o dia a dia das comunidades de Graça e Schnoor, de onde é comum a migração de homens para o corte de cana-de-açúcar em São Paulo. (foto: Lúcia Cavalieri)

Apesar das dificuldades, a opção de apenas o homem migrar ainda parece ser a melhor. A pesquisadora explica que, se toda a família se transferisse para a periferia de uma cidade grande, perderia sua rede de parentescos, a sociabilidade camponesa e os vários benefícios restritos àquela localidade. Além disso, as usinas não costumam aceitar mulheres para trabalhar no corte, por conta da menor produtividade.

Mecanização: solução possível?

O estudo de Cavalieri questiona o título de energia limpa dado ao etanol, não só do ponto de vista social, mas também do ambiental, ao destacar – além das condições de trabalho análogas à escravidão – a poluição causada pela queima da palha de cana-de-açúcar antes do corte.

Mecanizar o trabalho pode ser solução para o problema, já que a técnica pouparia o meio ambiente e, ao mesmo tempo, o trabalhador

Segundo a pesquisadora, mecanizar o trabalho pode ser solução para o problema, já que a técnica pouparia o meio ambiente e, ao mesmo tempo, o trabalhador. Mas ela não acredita que essa opção vá se consolidar, já que uma mudança desse porte envolve aspectos físicos do solo, como a declividade, e ainda está à mercê de pressões políticas.

“Existe uma lei que determina que essa questão seja regularizada até 2030, mas infelizmente são muitas as estratégias usadas pelas usinas para driblar a fiscalização”, diz Cavalieri. “Os usineiros de cana, como expressão do agronegócio brasileiro, exercem muita influência na Câmara e no Senado.”

Outra questão que merece debate é o destino dos trabalhadores substituídos pelas máquinas. Cavalieri lembra que, embora existam programas empenhados em capacitá-los para outras funções, esses projetos não são suficientes para empregar a quantidade de pessoas que seria dispensada.

Carolina Drago
Ciência Hoje On-line