Predadores e presas

Há 40 anos, o cinema lançava Tubarão, de Steven Spielberg – talvez um marco na imagem medonha que fazemos desses animais. Mas um dado pouco conhecido, e que passa longe do filme, é que cerca de 100 milhões de tubarões são mortos anualmente – número incrivelmente superior ao de humanos mortos por esses animais, entre cinco e 15 por ano, segundo dados do Arquivo Internacional de Ataques de Tubarão (ISAF, na sigla em inglês).

Os ataques de tubarões podem ser classificados “provocados” – quando há contato físico humano com o tubarão, por exemplo, para remoção do animal de uma rede de pesca – e “não provocados” – em que o tubarão, sem ter sofrido provocação, morde o homem. O segundo tipo tem aumentado, pois os números têm relação com a maior quantidade de pessoas que frequentam o ambiente marinho, mas a grande maioria não é fatal. (foto: Banco de Imagens Projeto Tamar)

O comércio mundial de produtos gerados a partir dos tubarões se aproxima de US$ 1 bilhão ao ano. Carne, pele, cartilagens e fígado desses predadores são comercializados, mas a iguaria mais valorizada são as barbatanas, apreciadas em forma de sopa nos países asiáticos, como a China, onde a porção pode valer 100 dólares.

Embora representem menos de 5% do peso total do tubarão, as barbatanas podem custar 50 dólares por quilo, contra 1,5 dólar por quilo de carne. Faça as contas: isso explica a recorrente prática do finning, que consiste em capturar o tubarão, extrair suas barbatanas e descartar o restante do corpo do animal – muitas vezes ainda vivo – no mar.
 

Finning é a prática de retirar as
barbatanas do tubarão para
comercializá-las – as nadadeiras
têm alto valor de mercado,
especialmente na Ásia. (foto: NOAA)

A pesca desordenada é a maior ameaça aos tubarões, somada à perda de hábitat. “Embora haja exceções, a exemplo do tubarão-azul, o estoque de um grande número de espécies de tubarão encontra-se em declínio. Muitas já se encontram sob risco de extinção, implicando na possibilidade concreta do seu desaparecimento definitivo da natureza”, destaca Fábio Hazin, presidente do Comitê de Pesca da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).

Em 2014, a União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN) calculou que um quarto dos tubarões e raias (grupo conhecido como elasmobrânquios) do mundo estão ameaçados de extinção. Das 465 espécies de tubarões analisadas, 11 estão criticamente em perigo, 15 em perigo e 48 vulneráveis.

No Brasil, segundo o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), há registros de duas espécies regionalmente extintas, o tubarão-lagarto (Schroederichthys bivius) e o tubarão-dente-de-agulha (Carcharhinus isodon). “Existem ainda pelo menos 28 espécies de elasmobrânquios em estágio elevado de ameaça”, ressalta Jorge Kotas, analista ambiental do ICMBio. Ele lista exemplos: peixes-serra, mangonas, raias-sapo, tubarões-martelo, cações-anjo, cações-quatie, raias-viola.

 

Esforços de preservação

Predadores de topo da cadeia alimentar nos oceanos, os tubarões mantêm equilibradas as populações de diversas espécies, preservando saudáveis os ecossistemas oceânicos. O declínio desses peixes causaria impactos amplos, como a diminuição de algas marinhas e recifes de corais. Além disso, segundo Kotas, os tubarões são responsáveis pelo controle populacional e qualidade genética de várias populações marinhas, pois, como predadores, alimentam-se de animais mortos, doentes e menos hábeis.

Frente às preocupações para proteção de diversas espécies de tubarão em declínio, vêm sendo criadas legislações nacionais e tratados internacionais para sua conservação. Um exemplo é o Plano de Ação Internacional para a Conservação e Gestão dos Tubarões (IPOA-Sharks), lançado em 1999 pela Comissão das Pescas da FAO. “Vários países têm adotado o IPOA-Sharks e elaborado planos de ação nacionais que estabelecem diretrizes para o estudo e adequada exploração dos tubarões”, destaca Hazin.

Há cerca de 500 espécies de tubarões no mundo. Elas estão distribuídas por todos os oceanos, nas pequenas a grandes profundidades, e alguns rios. No Brasil, segundo o ICMBio, há 84 espécies. Na foto, um tubarão-limão. (foto: Banco de Imagens Projeto Tamar)

Outro desdobramento positivo do esforço em proteger esses vertebrados foi a criação de santuários para os tubarões, primeiro em Palau, e depois em outros locais, como as ilhas Maldivas e as Bahamas.

No Brasil, a prática de finning foi proibida em 2012. Em 2014, foi criado o Plano de Ação Nacional para a Conservação dos Tubarões e Raias Marinhos Ameaçados de Extinção (PAN Tubarões), com ênfase em 12 espécies.

Tubarão-azul: exceção em meio às fortes ameaças enfrentadas pelos elasmobrânquios. (foto: Banco de Imagens Projeto Tamar)

O plano contempla objetivos específicos importantes, como sensibilizar os pescadores e a sociedade acerca da importância dos elasmobrânquios e de sua conservação para a integridade dos ecossistemas marinhos. Mas não é suficiente. “Há muito que avançar para a conservação dos elasmobrânquios, como a proibição dos espinheis com cabos de aço, criação de programas de conservação de tubarões e raias em Unidades de Conservação Marinhas e a redução da mortalidade pós-captura desses animais nas pescarias”, enfatiza Kotas.

 

Desconstruindo preconceitos

Além da fiscalização pesqueira e dados estatísticos oficiais, pesquisas científicas são fundamentais para a proteção dos elasmobrânquios. Ricardo Rosa, presidente da Sociedade Brasileira para o Estudo de Elasmobrânquios (SBEEL), indica a necessidade de pesquisas sobre aspectos biológicos pouco conhecidos, como alimentação, reprodução, migrações e uso do hábitat, além do monitoramento das populações. Hazin acrescenta estudos relacionados à identificação das populações e estoques. Kotas, por sua vez, cita análises que indiquem a importância econômica destas espécies vivas para o turismo de mergulho. “A observação de tubarões em mergulhos nas Bahamas gera aproximadamente U$ 78 milhões ao ano”, recorda.

Grande e inofensivo, o tubarão-baleia alimenta-se apenas de organismos minúsculos. Além da pesca e da ameaça ao seu hábitat, o ciclo de vida dos tubarões – com crescimento lento, maturação sexual tardia, baixa fecundidade, longo período de gestação e grande longevidade – dificulta sua recuperação na natureza. (foto: Banco de Imagens Projeto Tamar)

Apesar de sua importância ecológica e econômica, a imagem negativa como ‘vilões dos mares’ insiste em permanecer. “A mídia pode divulgar os fatos belíssimos acerca da biologia dos tubarões, o que serve para desmistificá-los, e não apenas enfatizar os incidentes”, lembra Rosa. Outras ações educativas e de divulgação científica poderiam contribuir para a desconstrução desse mito do tubarão ameaçador.

“Precisamos informar sobre a inestimável importância dos tubarões para o equilíbrio e a saúde dos ecossistemas marinhos e a incidência extremamente rara, comparativamente, de incidentes com seres humanos”, conclui Hazin. “Abelhas, cobras, hipopótamos e mesmo raios, por exemplo, matam muito mais gente todos os anos do que os tubarões – que, ao contrário, são mortos aos milhões”.

 

Tássia Biazon
Especial para a CH Online