Príons desvendados

O processo de invasão de proteínas príon infectadas em células foi identificado por um grupo pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Elas são responsáveis por doenças neurodegenerativas graves ainda sem tratamento, como a kuru, que infectou uma tribo da Papua-Nova Guiné, e o mal da vaca louca, que obrigou o extermínio de muitos rebanhos bovinos na Europa, além de contaminar cerca de 170 humanos na Inglaterra. A descoberta pode representar um passo rumo à cura dessas moléstias.
 
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Neurônios com o príon celular não infectado (chamado proteína PrPc) depositado, destacado (em vermelho na imagem).

A proteína prion celular é encontrada normalmente em nosso organismo em uma forma não-infecciosa. A diferença entre a versão normal e a infectada está na distribuição de aminoácidos. Enquanto a estrutura da primeira apresenta-se em sua maioria na forma alfa-hélice, a estrutura da segunda tem a forma folha beta. Segundo Marco Antônio Prado, professor do Departamento de Farmacologia da UFMG, o grande problema ocorre quando as duas proteínas se encontram. “A infectada corrompe o príon celular e se propaga como um vírus.”

 
A tese de doutorado de Ana Cristina Magalhães, orientada por Prado, buscou determinar algumas características dos príons. O trabalho foi feito a partir de observações em um microscópio confocal, no qual se pode ter planos específicos de uma célula. Os resultados revelaram que os príons infectados formam aglomerados que se ligam à superfície celular. Durante o processo de endocitose, no qual a célula absorve nutrientes através de sua membrana celular, um pedaço desse aglomerado é quebrado e ultrapassa a membrana. “Como os príons infectados não são digeridos facilmente, eles ficam vagando no interior da célula até encontrarem as proteínas príon não-infectadas”, explica Prado.
 
Segundo os pesquisadores, o local onde os príons infectados devem ser combatidos é na membrana celular, do lado de fora da célula. “Se conseguirmos impedir que este aglomerado de príons interaja com a superfície celular, impossibilitaremos sua penetração na célula, o que impediria seu contato com as proteínas do nosso organismo e, conseqüentemente, a infecção”, explica Prado.
 
O estudo, que envolveu pesquisadores do Instituto Nacional de Doenças Alérgicas e Infecciosas (EUA), foi publicado no Journal of Neuroscience . A continuação do trabalho tem a colaboração de cientistas da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Instituto Ludwig de Pesquisa Sobre o Câncer.
 
Para o professor, um grande risco oferecido por essas doenças se deve à falta de conhecimento sobre príons. “Há um enorme campo a ser explorado por pesquisadores, mesmo em relação à proteína não-infectante, presente em nosso corpo, da qual ainda não se conhece todas as funções.”
 
A doença priônica mais comum entre humanos é a Creutzfeldt-Jakob. Segundo Prado, ela pode ser transmitida em procedimentos cirúrgicos, como neurocirurgias, devido a utilização de instrumentos sem a devida higienização. “Houve também casos de infecção por uso de hormônios de crescimento obtidos de de cadáveres”, diz. Ele explica ainda que doenças priônicas também podem ser transmitidas hereditariamente.
 
No caso da kuru, uma variação da Creutzfeldt-Jakob, a proliferação ocorreu devido à prática tradicional de canibalismo da tribo papuásia. “A contaminação só teve fim quando os indivíduos foram convencidos a parar de comer os cérebros dos mortos”, explica Prado. Contaminação também foi a forma de proliferação do mal da vaca louca. Isso ocorreu porque, ao contrário do Brasil, na Europa o gado foi alimentado com ração animal. Verificou-se que esta era feita a partir do sistema nervoso de ovelhas, que poderiam estar contaminadas.

Júlio Molica
Ciência Hoje On-line
13/12/2005