Criatividade a serviço da ciência

Ganhador do Nobel em 2016, Sir Fraser Stoddart compara o ofício do cientista químico ao de um pintor, ao ser capaz de criar seu próprio objeto de trabalho. No seu caso, as revolucionárias máquinas moleculares artificiais.

Até seus 17 anos, Fraser Stoddart viveu numa fazenda nos arredores de Edimburgo, na Escócia, sem acesso à energia elétrica. Naquele ano, na véspera da celebração de Natal, o adolescente subiu ao telhado da casa e fez uma ligação de alguns fios que garantiu o abastecimento clandestino à família por uma semana. Décadas depois, em 2016, — ainda com uma boa dose de criatividade e ousadia —, o já então Sir Fraser Stoddart recebeu o Prêmio Nobel de Química, aos 74 anos.

O reconhecimento da Academia Real das Ciências da Suécia, compartilhado com os pesquisadores Jean-Pierre Sauvage e Bernard L. Feringa, deve-se ao design e produção de máquinas moleculares artificiais – sistemas de moléculas interconectadas através de vínculos mecânicos que desempenham movimentos controlados quando estimulados eletricamente ou com luz. A descoberta inovadora no campo da nanotecnologia possibilita a realização de tarefas microscópicas como o desenvolvimento de materiais à base de polímeros resistentes a arranhões, fazendo com que o pequeno desastre após a queda de um celular seja desfeito em questão de tempo, a olho nu.

Enfrentando críticas precoces de seus pares, Stoddard ajudou a criar, assim, uma nova área na Química, com influência sobre diversas outras disciplinas, da medicina à tecnologia da informação. Em visita ao Brasil, o pesquisador falou sobre os desafios do trabalho científico.

CIÊNCIA HOJE: O senhor cresceu em uma fazenda a alguns quilômetros de Edimburgo e ainda trabalhava lá quando foi finalmente ‘picado pelo mosquito da pesquisa’, como destaca nas suas notas biográficas do Nobel. De que forma o dia a dia no campo influenciou seus primeiros passos na carreira científica?

FRASER STODDART: Eu acho que isso me ajudou enormemente. Havia muitas pessoas em momentos específicos do ano, como a colheita, que vinham de vilarejos vizinhos. Conheci o que chamo de figuras, tanto homens como mulheres, absolutamente ‘fora da caixa’. Aprendi ainda a importância de ser multitarefas. A fazenda tinha uma pequena produção de laticínios, galinhas, cultivo de couve, nabo, batatas… havia épocas do ano em que tudo isso estava acontecendo ao mesmo tempo. Começávamos ordenhando vacas na manhã e depois do café já estávamos em cima de um trator cuidando do campo. Acho que foi um bom treinamento em termos de compartimentar as tarefas e focar em fazer bem o trabalho. Além disso, a fazenda abriu meus olhos para o aspecto da engenharia na vida. Tínhamos carros e tratores que podíamos desmontar e remontar para torná-los mais eficientes. Esses dias se foram, foi uma cápsula no tempo. Eu não poderia repetir isso com o atual carro motorizado, controlado por computador.

 

CH: O senhor costuma destacar que todo cientista precisa encontrar um ‘grande problema’ que vai mover seu trabalho. Como foi a sua busca?

FS: Eu levei um tempo para encontrá-lo. Minha primeira década na carreira foi realmente um período de aprendizado, entendendo como usar os novos conhecimentos na área da química, como reconhecimento molecular e química supramolecular, que buscavam entender como as moléculas interagem entre si. Com o tempo, fui ficando frustrado em estar apenas seguindo os passos de grandes mestres, como [o químico norte-americano] Donald Cram [Nobel em 1987], e comecei a me perguntar: “estou colocando essas peças juntas, elas se ligam em alguma extensão, mas ainda estão separadas. Como eu posso parar isso?” Começou a se tornar óbvio que, se eu pudesse fazer isso [Stoddart usa os dois polegares e indicadores para formar dois elos interligados], as peças ainda se relacionariam, mas não poderiam se desligar. Eu deixaria nesse momento o que é chamado mundo supramolecular, o mundo para além da molécula, para focar no mundo da molécula. Nesse sentido, a mensagem que eu quero passar é que a química não é uma ciência antiga. Química é uma ciência incrivelmente criativa. Nós criamos nossos próprios objetivos de trabalho. Estamos na mesma categoria de um pintor, escultor, compositor ou romancista. A possibilidade de criar foi um grande impulso para mim.

Thais Lobo
Jornalista, especial para Ciência Hoje