Mortos também contam histórias

Sobre as memórias que nos constituem e nos impelem a buscar o contexto, muitas vezes cruel, em que se desenrolaram

CRÉDITO: IMAGEM ADOBESTOCK

No livro Um brinde aos mortos: histórias daqueles que ficam, sua autora, a filósofa belga Vinciane Despret nos diz que “os mortos fazem, daqueles que ficam, fabricantes de narrativas”. Afirmação que pode ser lida tanto como uma ordem do “além”, para os que acreditam em outras vidas, quanto em uma forma de não permitir que nossos mortos amados sejam esquecidos. 

Não sei dizer se acredito ou não em outras vidas. Mas acredito piamente que precisamos contar as histórias dos mortos para que eles permaneçam vivos em nossa memória. Aliás, foi esse o caminho que encontrei para lidar com o luto pela perda da minha mãe: revisitar o passado que ela sempre fez questão de preservar em sua memória lúcida até os 91 anos de idade.

As histórias de minha mãe me construíram e me trouxeram até aqui. Algumas me impressionaram muito e outras ainda me assombram, como a de Sandoval e José, que me levou a escrever este texto. José, segundo os alienistas da época, era imbecil e Sandoval, epilético.  

Sandoval gostava de colocar minha mãe no colo e correr pelo terreiro, quando ela deveria ter uns quatro ou cinco anos. Ele também gostava de correr pelo mato, tirar a roupa e voltar pelado para casa. José, por sua vez, gostava que Sandoval o cortasse com faca, porque achava bonito ver o sangue escorrer. Minha mãe nunca soube dizer o que eles tinham de fato, e os perdeu de vista quando alguém, que ela também nunca soube quem era, os levou, ainda crianças, para interná-los no Hospício Pedro II, no Rio de Janeiro.