O vírus do racismo e a covid-19

No final de fevereiro, quando foi confirmado o primeiro caso de covid-19 no Brasil, a doença se concentrava em bairros de classes média e alta das maiores metrópoles do país, São Paulo e Rio de Janeiro. Os primeiros infectados foram pessoas que viajaram ao exterior. Quatro meses depois, 57% dos óbitos são de pessoas pretas e pardas, segundo dados do Ministério da Saúde, e a doença avança nas periferias e no interior do país. Nos atestados de óbito a causa mortis é a covid-19, mas o racismo estrutural, que submete a maior parte da população negra a péssimas condições de vida, é tão culpado quanto o vírus.

A pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2) têm causado fortes impactos sociais e econômicos por todo o planeta. No Brasil, os dados sobre a doença, até julho, seguiam alarmantes – para dizer o mínimo. Atrás dos Estados Unidos, somos o segundo país no mundo com o maior número de infectados e mortos pela covid-19, e temos grandes chances de ocupar a lamentável primeira colocação, caso as políticas para conter a transmissão da doença não avancem. No momento em que escrevo este texto, mais de 60 mil brasileiros perderam suas vidas e os casos confirmados já ultrapassam um milhão e quatrocentos mil. Além dos números muito elevados de contaminados e mortos, a curva de contágio continua ascendente em todo o país.


Já que no Brasil não há como dissociar, em termos sociológicos, condições sociais do pertencimento étnico e racial, muitas das pessoas infectadas são negras (pretas e pardas de acordo com o IBGE) e de baixa renda

A covid-19, no início, era uma “doença importada” que acometia basicamente pessoas de classe média e média alta, residentes em áreas nobres dos grandes centros urbanos, que haviam viajado para países em que o vírus já circulava, sobretudo China e Europa. Devido a esse perfil social e econômico, a maior parte dos infectados era branca. Semanas depois as transmissões passaram a ser qualificadas como sustentáveis, ou seja, sem controle de quem estaria passando a doença para os demais. Bairros populares, periferias, favelas das grandes cidades e territórios de populações tradicionais, logo, foram atingidos pelo novo coronavírus. E já que no caso brasileiro não há como dissociar, em termos sociológicos, condições sociais do pertencimento étnico e racial, muitas das pessoas infectadas são negras (pretas e pardas de acordo com o IBGE) e de baixa renda.

Os efeitos e os impactos sociais causados pela pandemia do covid-19 não são os mesmos para todas as populações ou grupos. E a explicação disso é relativamente simples: quanto piores as condições materiais de vida de certos grupos, pior o impacto da doença em suas chances de recuperação e sobrevivência. O sociólogo argentino Carlos Hasenbalg (1942-2014) cunhou a expressão “ciclo cumulativo de desvantagens”, em meados dos anos 1980, a fim de explicar as dinâmicas sociorraciais experienciadas pelas famílias negras. Desvantagens e prejuízos sociais e econômicos causados pelo racismo estrutural e pela pobreza marcam negativamente os processos de ascensão e mobilidade social de pessoas negras. Neste sentido, uma pessoa negra jovem, cujos pais tiveram precária escolarização, tende a deixar como “herança” poucas expectativas de aumento de escolaridade para os seus filhos, e assim sucessivamente.

Marcio André dos Santos

Instituto de Humanidades e Letras
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira  (Unilab) – Campus dos Malês