Scheherazade brasileira

Historiadora da UFMG lembra a importância do legado materno – o incentivo à leitura e à busca do saber em épocas em que a mulher era discriminada na universidade – para o trabalho desafiador de construir narrativas sobre o passado

FOTO: SARITA ALBAGLI

Logo após a morte de Dora, arrumando seus guardados, encontrei os carnês de pagamento a prazo, todos da década de 1960. O primeiro referia-se à coleção O mundo da criança, paga em 15 prestações. O segundo referia-se à enciclopédia Delta Júnior. Havia ainda os carnês da Barsa, e da estante que ela também fez questão de comprar. Logo que quitava um carnê, ela iniciava outro. “As crianças têm que ter livros”, justificou ela a meu pai, angustiado com mais uma dívida. Éramos seis filhos de dois funcionários públicos com ganhos modestíssimos.

Entre os papéis, encontrei também o convite para sua formatura em odontologia na Universidade de Minas Gerais (atual UFMG), em 1951. Entre os formandos, havia apenas duas mulheres, e o retrato da colação de grau evidencia a exclusão feminina dos cursos superiores na época. Ela me contou como alguns professores a discriminaram, e um deles a obrigava a sair da sala em certos momentos, dizendo que o assunto “não era apropriado para moças”.