Um terço da população mundial vive em terras secas em mais de 100 países – a maioria deles em desenvolvimento. De acordo com a estimativa da Organização das Nações Unidas (ONU), mais de um bilhão de pessoas têm sua subsistência ameaçada pelo risco da desertificação, que pode levar ao rompimento de quase metade dos sistemas de cultivo de todo o mundo.
A gravidade da ameaça levou a ONU a lançar um plano de combate à desertificação, que busca a proteção e o manejo responsável das terras secas nos próximos dez anos. A Década para os Desertos e a Luta contra a Desertificação foi anunciada no último mês de agosto, simultaneamente no Brasil e na África.
No Brasil, a ameaça da desertificação costuma ser associada a duas regiões distintas – o semiárido do Nordeste e os pampas gaúchos. No entanto, o que se verifica em cada uma dessas áreas são fenômenos causados por fatores de natureza diversa – tanto que alguns especialistas preferem usar termos diferentes para designá-los.
Assista a um vídeo institucional da ONU que alerta para os riscos da desertificação.
O caso do semiárido
Em grande parte da região Nordeste e no norte de Minas Gerais, as áreas suscetíveis à desertificação cobrem mais de um milhão de quilômetros quadrados segundo as estimativas oficiais do Ministério do Meio Ambiente (que incluem ainda nessa estatística uma área do noroeste do Espírito Santo, contestadas por alguns pesquisadores por não apresentar clima seco).
O risco de desertificação é associado a um processo de degradação do solo motivado pela intervenção humana. “O desmatamento, o pastoreio em excesso e a irrigação mal feita são responsáveis por essa degradação”, resume Bartolomeu Israel de Souza, estudioso do tema na Universidade Federal da Paraíba.
“Os principais prejuízos são a redução da biodiversidade, a compactação, erosão e diminuição da fertilidade dos solos, o assoreamento dos rios e a extinção de nascentes de água.”
O geógrafo lembra também que o aquecimento global também pode ter sua parcela de culpa. “De acordo com a definição oficial da ONU para desertificação, as mudanças climáticas também podem gerar esse tipo de impacto ambiental, mas ainda não existem provas de que isso aconteça no Brasil”, afirma.
Souza considera bem-vinda a campanha contra a desertificação no semiárido brasileiro. “O plano da ONU pode canalizar investimentos nacionais e internacionais para o uso sustentável das terras. Outras medidas de combate são o reflorestamento e a contenção da erosão”, destaca o pesquisador.
Ele também alerta para a necessidade de investimentos em educação, assistência técnica para os pequenos e médios produtores da zona rural, revisão política da distribuição de terras, mapeamento de unidades de conservação ambiental e incentivo ao turismo rural e ao ecoturismo na região.
Arenização vs. desertificação
A outra região do Brasil que vem à mente quando se fala em desertificação é o pampa da região Sul. As áreas de solo exposto nesse bioma já foram consideradas vítimas em potencial da desertificação em decorrência da monocultura de soja, que enfraquece o solo e elimina a vegetação original. No entanto, essas áreas não estão contempladas no plano da ONU, e alguns especialistas relutam em falar de desertificação para definir o que ocorre ali.
“Para que uma área seja considerada desertificada, o solo em questão deve estar localizado em regiões áridas, semiáridas ou semiúmidas. O pampa é úmido”, explica a geógrafa Dirce Maria Suertegaray, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
“O que vemos, principalmente na porção sudoeste do Rio Grande do Sul, são dois processos diferentes de erosão do solo. Um corresponde à ação humana, enquanto o outro é um fenômeno natural que, portanto, não deveria ser combatido”, diferencia.
Segundo a pesquisadora, que estudou dez cidades no sudoeste do Rio Grande do Sul, existem áreas onde a erosão do solo não tem está vinculada à interferência humana. Nesse caso, o conceito mais adequado para denominar o processo é arenização.
“O solo dessas regiões está associado a depósitos superficiais arenosos que podem ter origem vinculada a processos fluviais e eólicos de clima semiárido. Há cerca de 3 mil anos, esse local era dominado por um clima semiárido, e não úmido, como conhecemos hoje, e as dunas que constituem parte desses depósitos superficiais são uma herança desse tempo”, diz Suertegaray.
De acordo com a geógrafa, o clima se tornou úmido com o passar do tempo, o que fez com que a vegetação se expandisse. “A umidificação do clima e os processos decorrentes da ação das águas, como o escoamento concentrado na forma de ravinas e voçorocas, formaram sulcos no solo que, em alguns casos atingiram os lençóis freáticos. Estes processos promoveram e a remobilização das areias. Com isso, os depósitos superficiais foram parcialmente removidos e originaram os areais”, explica.
Pampas de fora
Por causa dessa diferença, o Ministério do Meio Ambiente, assim como a ONU, não inclui o pampa gaúcho no plano de combate à desertificação que estabeleceu em parceria com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Em vez disso, o órgão classifica o sudoeste do Rio Grande do Sul como uma área de atenção especial.
“Existem interesses políticos e administrativos em receber aporte internacional para recuperar estes biomas, mas, no caso do pampa, está comprovado que o processo de arenização promoveu um ecossistema particular, de origem antiga, com espécies vegetais e animais adaptadas aos areais”, avalia Suertegaray.
“Então, a verba recebida seria destinada a quê? A destruir esse ecossistema particular? Não seria melhor investir na reconstituição das áreas que efetivamente foram erodidas pelas atividades humanas?”, questiona a geógrafa.
Bruna Ventura
Ciência Hoje On-line