Radiação, um problema também brasileiro

O recente acidente nuclear em Fukushima voltou os olhos de todos para o Japão e chamou atenção para os perigos da radioatividade. Mas muitos se esquecem que o próprio Brasil já foi palco de tragédia semelhante há 24 anos, quando um catador de sucata goianiense levou para casa e desmontou um equipamento radioterapêutico que continha césio-137 em seu interior. Esse elemento radioativo – que hoje vaza do reator da usina nuclear japonesa – ainda faz vítimas em Goiânia.

Na ocasião, 19 gramas de césio foram suficientes para contaminar 249 pessoas e produzir 13 toneladas de lixo atômico. A família do catador de sucata e seus vizinhos, que tiveram contato direto com o elemento radioativo, apresentaram os sintomas mais graves, como queimaduras na pele, vômitos e diarreia, e quatro pessoas morreram. 

Os sobreviventes receberam tratamento médico e hoje não representam perigo de contaminar outros indivíduos. De acordo com o médico Alexandre Rodrigues, que coordenou o tratamento das vítimas iniciais do acidente a pedido da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), o césio tem uma vida útil curta e, cerca de um ano depois da contaminação, os radioacidentados já haviam eliminado toda a substância pelas fezes, urina e suor.

Apesar de não terem mais o césio no organismo, as vítimas do acidente e seus descendentes ainda sofrem com osteoporose, problemas dentários, de pele e do sistema nervoso causados por mutações genéticas.

“O césio atinge a população contaminada e irradiada até a terceira geração”

“O césio atinge a população contaminada e irradiada até a terceira geração”, afirma Julio Nascimento, coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa sobre Acidentes do Césio-137 (Nipac) da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO).

A exposição à radiação também pode causar câncer. Contudo, o último estudo epidemiológico feito na região, em 2006, pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), não confirmou o aumento dos casos da doença entre os expostos ao césio.

Nascimento, que acompanha de perto as vítimas do acidente, contesta esses resultados. “A alta incidência de câncer entre a população é perceptível mesmo em nível primário de observação”, afirma. “A CNEN nega essa realidade e apenas emite notas oficiais que tentam minimizar os efeitos, mas está claro que o quadro da doença na região não corresponde ao seu desenvolvimento na sociedade em geral.”

Já Rodrigues diz que não é possível fazer essa afirmação sem provas. “A incidência de mutações por radiação é muito baixa porque o organismo tem a capacidade de reparar essa transformação”, argumenta. “Alterações genéticas acontecem com todos nós e, mesmo depois de um acidente, elas estão tão diluídas entre a população que não é possível dizer se um caso de câncer foi espontâneo ou provocado por radiação.”

Depósitos de lixo atômico
O acidente radiológico de Goiânia gerou 13 toneladas de lixo atômico, que foram enterradas em duas valas de 30 metros de profundidade revestidas de concreto e cobertas de terra no Parque Estadual Telma Ortegal, em Goiânia. (foto: Google Maps)

Monitoramento das vítimas

Desde o acidente, a Secretaria Estadual da Saúde de Goiás mantém um órgão de apoio e monitoramento da saúde das vítimas do césio-137, hoje chamado de Superintendência Leide das Neves (SuLeide), em homenagem à vítima mais exposta à radiação, que chegou a ingerir pequenas quantidades de césio e acabou morrendo.

A intituição presta assistência médica, odontológica e psicossocial a 863 pessoas, entre elas radioacidentados, seus filhos e netos. No entanto, Nascimento aponta que há muitas vítimas que não recebem a devida atenção por não terem sido oficialmente consideradas expostas ao elemento radioativo.

“Só foram reconhecidos como vítimas os que tocaram diretamente no césio, mas muitos foram contaminados por contato indireto”

“Só foram reconhecidos como vítimas os que tocaram diretamente no césio, mas muitos outros foram contaminados por contato indireto”, afirma. “Um grupo que deveria ser reconhecido são as famílias dos militares que ficaram de plantão no local de contaminação. Constantemente expostos, eles voltavam para casa com o uniforme contaminado e abraçavam os familiares.”

A cada três meses, a CNEN realiza medições nas áreas contaminadas e hoje a radioatividade nesses locais já não representa riscos à saúde. Mas Nascimento acredita que a evacuação na época do acidente não foi eficiente e que ainda pode haver pequenas quantidades de césio em outros pontos da região.

“No dia em que as casas contaminadas foram demolidas choveu e o material radioativo se espalhou pela cidade, chegando aos rios e esgotos. Além disso, os contaminados só foram isolados 15 dias depois de terem o primeiro contato com o césio.”

Até hoje, só foram reconhecidas oficialmente 14 mortes por exposição ao césio em Goiânia e os integrantes da Associação de Vítimas do Césio-137 ainda reivindicam o reconhecimento de outras pessoas afetadas pela radiação.

Sofia Moutinho
Ciência Hoje On-line

Este texto foi atualizado para incluir a seguinte alteração:

Na data de publicação desta notícia, o acidente nuclear do Japão ainda era considerado de nível 5 na Escala Internacional de Acidentes Nucleares – que vai de 1 a 7. No dia 12 de abril, a Agência de Segurança Nuclear do Japão elevou o evento para o nível máximo de gravidade. (18/4/2011)