Radiografia do envolvimento dos jovens no tráfico de drogas

“A gente não pode confiar nem no travesseiro que deita. (…) Depois que entra [no tráfico], não pode mais fazer as mesmas coisas de quando era livre. (…) Se entrou, tem que ficar até o final. É entre a vida e a morte ou então na cadeia.”

null O depoimento acima é um reflexo da opção de jovens das favelas pelo tráfico de drogas diante de uma perspectiva de vida nada promissora, que inclui falta de oportunidade de trabalho, baixa escolaridade, moradia insalubre e preconceito social. Assim, muitos acabam por levar uma vida curta e cheia de riscos — mas também bastante lucrativa. O gerente-geral de uma boca-de-fumo, por exemplo, se expõe a confrontos com a polícia e facções rivais, mas pode ganhar de 2 a 3 mil reais por semana.

É o que mostra o estudo dos cientistas sociais Otávio Neto, Marcelo Moreira e Luiz Fernando Sucena, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Eles traçaram um perfil dos jovens envolvidos com o tráfico no Rio de Janeiro, exposto no livro Nem soldados, nem inocentes . Ao longo de um ano entre 1999 e 2000, os pesquisadores monitoraram e avaliaram o Sistema Aplicado de Proteção, criado pelo governo estadual para retirar os jovens do tráfico e garantir sua reintegração social. Os autores entrevistaram e acompanharam o dia-a-dia de 88 integrantes do projeto com idade entre 14 e 19 anos (79 homens e 9 mulheres) que já haviam sido detidos por envolvimento no tráfico. Eles acompanharam ainda entrevistas feitas por psicólogos, assistentes sociais e educadores de quatro ONGs.

null Afastar esses jovens do crime não é fácil. Além da falta de opções e do ciclo de dependência química e econômica em que eles se inserem uma vez envolvidos no tráfico, muitos não consideram sua atividade ilícita. “Eles dizem que não obrigam ninguém a subir o morro e comprar droga”, diz Marcelo. Um dos entrevistados confirma essa visão: “É um trabalho como outro qualquer. Tem horário, função e salário.” A remuneração, aliás, é grande atrativo do mercado das drogas: 46 entrevistados citaram ’a necessidade de ganhar dinheiro’ como a maior motivação para sua entrada no tráfico.

Dos 55 jovens que declararam sua renda semanal no ’movimento’, 22 recebiam acima de R$ 500; 15 tinham salário entre R$ 100 e 200; 4 entre R$ 300 e 400; 1 com R$ 100. Os 13 restantes relacionaram seu salário à quantidade de drogas que vendiam. Com o dinheiro, os jovens ajudam a família e também satisfazem os próprios desejos de consumo. “Mas esses jovens estão envolvidos no ’varejo’ das drogas”, ressalta Marcelo. “Esse setor, embora seja o mais visível e conhecido do mercado ilícito do tráfico, é o menos lucrativo, sobretudo se comparado aos que fazem a lavagem de dinheiro no mercado lícito internacional.”

Os jovens podem conseguir quantias ainda maiores que as citadas acima e ascender na vasta hierarquia do tráfico, caso demonstrem bom manejo de armas e coragem no embate com policiais para conquistar a confiança do gerente da boca-de-fumo e do dono. “Mas são pouquíssimos os que ascendem até os cargos mais elevados”, ressalta Marcelo. “A maioria morre antes.”

O mais grave é que, na tentativa de reconstruir o convívio social, muitos jovens ainda se deparam com preconceitos. “Cabe à sociedade não se afastar da problemática do tráfico. Para isso, um agente imprescindível é o poder público, por meio de políticas sociais e de segurança”, diz Marcelo. “Ele deve mobilizar a sociedade civil para tornar-se sua parceira efetiva no processo de formulação e implementação das políticas públicas que tentem não só tirar o jovem do tráfico, como também evitar sua entrada.”

Mais detalhes sobre o estudo relatado neste
texto podem ser obtidos no livro abaixo:

Nem soldados nem inocentes – juventude
e tráfico de drogas no Rio de Janeiro
Otávio Cruz Neto, Marcelo Rasga Moreira
e Luiz Fernando Mazzei Sucena
Rio de Janeiro, 2001, Fiocruz
199 páginas – R$ 20

Elisa Martins
Ciência Hoje On-line
17/03/03