Repressão popular

A censura aos movimentos artísticos no Brasil não acontecia apenas por imposição do governo. Estudo feito na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP) mostra que, em alguns casos, a própria sociedade pressionava os governantes para impedir a exibição de peças de teatro na capital paulista.

O estudo, realizado pela filósofa Carla de Araujo Risso em seu doutorado, analisou a censura às peças Perdoa-me por me traíres, escrita por Nelson Rodrigues em 1957, A semente, de Gianfrancesco Guarnieri (1961), e Roda Viva, de Chico Buarque (1968). Para isso, a filósofa utilizou os documentos do núcleo de pesquisa em comunicação e censura da USP, entre eles, os processos do governo sobre essas peças, as observações dos censores, cartas da população enviadas ao governo repudiando ou não as peças e recortes de jornais com notícias sobre as obras.

Mesmo antes do endurecimento da ditadura e até durante a democracia a censura estava presente na sociedade

Risso explica que escolheu analisar o período anterior ao Ato Institucional n.º 5 (AI-5), decreto de 1968 que dava poderes absolutos ao governo militar e suspendia várias garantias constitucionais, para mostrar que mesmo antes do endurecimento da ditadura e até durante a democracia a censura estava presente na sociedade.

A censura prévia ao teatro foi instituída pelo presidente Washington Luís com a sanção do Decreto n.º 18.527, de 10 de dezembro de 1928, e perdurou até a homologação da Constituição de 1988. De acordo com a legislação, os roteiros deviam ser submetidos à avaliação dos censores e podiam ser aprovados totalmente, aprovados com cortes ou interditados.

As peças interditadas ficavam proibidas de ser representadas em seu estado de origem, podendo ser liberadas em outras unidades da federação. No caso das aprovadas, os censores compareciam ao ensaio geral para verificar cenários, adereços e figurinos e, obviamente, se os cortes foram respeitados.

A pesquisadora diz que muitas peças teatrais foram reprimidas pelos próprios paulistanos – principalmente os religiosos –, que pressionavam o governo, por meio de cartas, para impedir que as obras fossem exibidas. As três peças analisadas acabaram sendo censuradas em São Paulo.

Abaixo-assinado contra a peça ‘Perdoa-me por me traíres’
Entidades católicas recolheram mais de 3 mil assinaturas para impedir que a peça ‘Perdoa-me por me traíres’ fosse encenada. (foto: Carla Risso)

Segundo Risso, uma das explicações para a repressão popular pode estar no fato de essas peças tratarem de temas tabus de modo tão explícito. Perdoa-me por me traíres aborda a prostituição, o incesto e o aborto. Já o texto de Guarnieri traz como temática a organização do Partido Comunista. Chico Buarque fala de propina e sexo em Roda Viva.

“As pessoas se incomodam em saber que existe alguma coisa com a qual elas não estão de acordo e que pode ferir a moral da sociedade”, analisa a filósofa. “Em um ímpeto de proteger os ‘mais fracos’, elas querem a censura, que acaba sendo um ato de puro protecionismo.”

Enquanto isso, em Portugal…

Nessa mesma época, Portugal vivia a ditadura de António de Oliveira Salazar, instituída em 1933 e só derrubada em 1974. O governo português mantinha métodos de censura artística muito parecidos com os brasileiros.

Para comparar o tipo de repressão praticado em Portugal e no Brasil no mesmo período e em situações semelhantes, Risso analisou, por meio de documentos da Torre do Tombo (Lisboa), o tratamento dado pelo governo lusitano à peça A promessa, escrita pelo dramaturgo português Bernardo Santareno em 1957.

A promessa foi encenada durante curta temporada na cidade do Porto (Portugal) e tratava de temas como traição, castidade e religiosidade. Documentos oficiais e reportagens de jornais da época mostram que a obra foi aprovada com cortes e que não houve falta de público.

Censura à peça portuguesa ‘A promessa’
Trecho censurado da peça portuguesa ‘A promessa’. A obra tratava de temas como traição, castidade e religiosidade. (foto: Acervo do Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo – Lisboa)

“Mas alguns membros da Igreja Católica não gostaram da peça e passaram a reprimi-la, enviando muitas reclamações ao governo”, conta a pesquisadora, acrescentando que a polêmica gerada impediu que a obra fosse encenada em outras cidades, como Lisboa. “Mesmo sem ter assistido à peça, muitas pessoas sentiam-se desconfortáveis diante dos temas abordados”, supõe.

Controle social

A pesquisa de Risso indica que o controle social mantém estreita relação com a censura das peças pelo governo.

No caso de Perdoa-me por me traíres, por exemplo, nem o apoio da imprensa conseguiu evitar que as devotas católicas articulassem um abaixo-assinado com 3 mil assinaturas para impedir sua exibição na capital paulista. A peça de Nelson Rodrigues já havia sido encenada anteriormente no Rio de Janeiro.

A semente teve sua apresentação restrita a um único teatro, em São Paulo. Sua proibição posterior partiu do próprio governo, porém, várias cartas de apoio foram enviadas para a Divisão de Diversões Públicas do Estado de São Paulo como forma de aprovação da censura.

Embora a censura não esteja institucionalizada atualmente, o controle social ainda é exercido

O caso da peça de Chico Buarque – que chegou a ser exibida no Rio de Janeiro, em Porto Alegre e em São Paulo – foi mais extremo, porque os atores xingavam a plateia e faziam gestos obscenos, o que fez um grupo paramilitar praticar atos violentos contra os artistas. Ao mesmo tempo, Roda Viva conquistou grande apoio daqueles que compartilhavam das ideias do autor. Mas isso não impediu que a obra fosse censurada em todo o território nacional pouco antes da promulgação do AI-5.

Risso ressalta que, embora a censura não esteja institucionalizada atualmente, o controle social ainda é exercido. “O Brasil sofre de uma censura jurídica, porque agora qualquer grupo pode reclamar de qualquer coisa e conseguir a sua proibição por meio da justiça.”

Fernanda Braune
Especial para a CH On-line