Resgate da memória do Holocausto no Brasil

 


Mapa com traçado de uma “rota de fuga” desenhado em 1937 por Federico Freudenheim, que tinha então 13 anos. Sua família veio da Alemanha para o Brasil, com escala no Uruguai (imagem: Arquivo Irene Freudenheim/SP).

Entre 1937 e 1948, o Brasil teve políticas de Estado anti-semitas que comprometeram a vida de muitos judeus sobreviventes do Holocausto. A imigração era regulamentada por circulares secretas que proibiam a emissão de vistos para judeus e exigiam passagens de ida e volta para que eles pudessem entrar no país. Esses documentos estão sendo analisados pela equipe da historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, da Universidade de São Paulo, e serão disponibilizados em um portal na internet – o Arquivo Virtual sobre Holocausto e Anti-Semitismo (Arqshoah).

Essa iniciativa reunirá informações sobre a comunidade judaica radicada no Brasil durante o período de ascensão do nazi-fascismo na Europa. O portal será lançado em 27 de janeiro de 2009, Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto. Estarão disponíveis ali entrevistas com refugiados e parentes, livros de memórias, rotas de fuga, uma “galeria dos justos” com os brasileiros que ajudaram a salvar judeus, notícias da época, produções artísticas sobre o Holocausto, livros e artigos brasileiros de orientação anti-semita.

Uma equipe de pesquisadores está trabalhando na digitalização de documentos oficiais disponíveis no Arquivo Histórico do Itamaraty e no Arquivo Nacional. Entre o material selecionado, estão mais de 20 circulares secretas anti-semitas editadas a partir de 1937, durante o Estado Novo, incluindo outras versões produzidas pelo governo Dutra.

“Surpreendi-me com uma circular de 1948 que não deixa dúvidas sobre a postura intolerante do Brasil”, afirma Tucci. “Mesmo após a divulgação das atrocidades praticadas pelos nazistas durante o Holocausto, o país continuou a proibir a emissão de vistos para judeus.” A historiadora conta que, entre 1937 e 1948, muitos judeus entravam no Brasil com visto de católicos ou turistas e com documentos falsos para fugir das perseguições e da morte planejada pelos nazistas e por países colaboracionistas.

Tucci ressalta que tais medidas eram mantidas secretas pelo Itamaraty e pelo Ministério da Justiça e Negócios Interiores, o que contribuiu para difundir uma imagem deturpada do Brasil como nação solidária à causa dos refugiados judeus frente a entidades internacionais. “Nos textos de diplomatas, médicos, psiquiatras e juristas, fica claro que eles eram contra a entrada de sobreviventes dos campos de concentração, sob a alegação de que eles não tinham condições físicas e mentais para fazer parte da população brasileira, que precisava de pessoas saudáveis e aptas para o trabalho”, relata a historiadora.

Trajetória de vida dos refugiados

Boletim do Comitê Auxiliar do Joint editado em 1936. Essa organização teve importante papel no salvamento de milhares de refugiados do nazi-fascismo que buscaram refúgio nas Américas, em Portugal e até na China (foto: Arquivo Tucci/SP).

A equipe liderada por Tucci está realizando um inventário dos judeus e ciganos refugiados do nazismo no Brasil. Trata-se do primeiro mapeamento daqueles que buscaram abrigo no país fugindo das perseguições raciais sustentadas pelos regimes nazi-fascistas.

Segundo a historiadora, o número de refugiados em nosso país pode chegar a 18 mil, mas essa contagem pode estar subestimada em função dos vistos concedidos aos ‘católicos’, turistas ou ‘em trânsito’. “Com o inventário dos vistos negados, poderemos também ter uma dimensão da aplicação das circulares secretas que garantiram milhares de indeferimentos”, completa Tucci. 

O grupo está entrevistando sobreviventes ou seus descendentes e analisando listas de passageiros de navios, assinatura de vistos nos passaportes, fotografias e outros documentos. O inventário está sendo feito com o preenchimento de formulários distribuídos entre as comunidades judaicas para a identificação dos sobreviventes de campos de concentração e de seus familiares ou conhecidos. Quem tiver informações sobre sobreviventes, brasileiros que ajudaram judeus refugiados ou registros da época pode entrar em contato com a equipe do projeto pelo endereço eletrônico [email protected] ou pelo telefone (11) 3091-8598.

As entrevistas serão disponibilizadas no portal Arqshoah, bem como as rotas de fuga dos refugiados e seus livros de memórias. O portal terá ainda a seção “Ação Educativa”, com material didático sobre o Holocausto disponível para professores. “Precisamos introduzir o debate sobre perigo das idéias racistas em sala de aula, pois essa iniciativa incentiva nossos jovens a ter uma postura mais tolerante e democrática frente ao diferente”, afirma Tucci.

O estímulo principal que move sua equipe é impedir que a memória dos sobreviventes do Holocausto radicados no Brasil caia no esquecimento. “Há um silêncio proposital sobre temas como o Holocausto”, avalia Tucci. “Isso foi minimizado com a abertura de alguns arquivos, mas dependemos ainda de uma postura do governo brasileiro para que sejam abertos outros, especialmente os da ditadura militar. É uma questão urgente que exige práticas democráticas para o fortalecimento de nossos ideais de cidadania”.

Tatiane Leal
Ciência Hoje On-line
26/08/2008