Roda-viva

No Brasil, este foi o ano em que pessoas do mesmo sexo ganharam direito à união estável e se casaram. Foi o ano em que arqueólogos encontraram o outrora maior porto de escravos do Atlântico. Uma certa ‘presidenta’ causou furor entre os linguistas em 2011. Menos furor apenas que um livro didático que trouxe ao público não especializado discussões que, antes, eram debatidas apenas na academia.

Mais cinco Unidades de Polícia Pacificadora, as UPPs, surgiram no Rio de Janeiro e uma está prestes a ser instalada na midiática Rocinha, considerada a maior favela da América Latina. Nestes quase 12 meses, antropólogos, sociólogos, arqueólogos, historiadores e outros estudiosos da área de humanas tiveram de falar, explicar, propor e – sobretudo – debater.

Debate amplamente exercido pela sociedade quando se falou das UPPs. Se em seu primeiro momento as unidades pacificadoras foram entusiasticamente celebradas – sem muito espaço para opiniões dissonantes –, 2011 abriu caminho para discussões mais profundas sobre as consequências, a curto e longo prazo, da medida.

A conquista do ano para as UPPs: mais vozes no debate

O sociólogo Luiz Antonio Machado da Silva, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, escreveu, em 2010, artigo para a Ciência Hoje em que manteve posição “nem cética nem crítica” sobre as UPPs. Em 2011, apesar de mais cinco unidades terem sido instaladas no Rio de Janeiro – totalizando 18 –, sua opinião continua semelhante. Há muitos desafios pela frente. Em especial, descobrir novas formas de intervenção pública nas favelas, que suplantem e complementem as próprias UPPs. No entanto, Silva reconhece a conquista do ano: mais vozes somaram-se ao debate.

“Houve uma consolidação significativa: a sociedade se apropriou da conversa sobre a vida nas favelas e o seu cotidiano. A sociedade também parou de delegar aos policiais apenas o trabalho sujo e a atuação deles se tornou tema central do debate público”, diz Silva. “Além disso, a reivindicação das camadas subalternas parou de ser considerada reclamação teleguiada do tráfico. Essas pessoas ganharam voz.” 

O plano do Governo do Estado do Rio de Janeiro para 2012 é que o programa das UPPs continue em áreas ainda dominadas pelo tráfico. “As UPPs vão continuar até 2500, vão continuar enquanto derem retorno eleitoral”, fala o sociólogo, com certa ironia.

Arqueologia proativa

Neste ano, as obras de revitalização da zona portuária carioca fizeram surgir locais que revelaram hábitos do Brasil de outro tempo: o cais do Valongo e o da Imperatriz. Os achados, no entanto, não foram obra do acaso, como faz questão de afirmar, antes mesmo de qualquer pergunta, a arqueóloga do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro Tânia de Andrade Lima, coordenadora das escavações que resultaram na descoberta.

“Encontramos o que pretendíamos. Não foi um achado fortuito, como noticiaram amplamente os meios de comunicação. Na verdade, submetemos um projeto ao Iphan [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional] porque já sabíamos da existência do cais do Valongo”, enfatiza a arqueóloga. 

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Escavações no cais do Valongo: celebração da cultura africana contra a amnésia social. (foto: Divulgação/Museu Nacional-UFRJ)

De fato, já se sabia que, no início do século 19, quase um milhão de escravos africanos passaram pelo cais do Valongo, o que torna o lugar, segundo Lima, o maior porto do Atlântico para escravos que chegavam às Américas. O Valongo foi encontrado abaixo do cais da Imperatriz, construído para recepção de Teresa Cristina, que viria a ser mulher de Pedro II.

O objetivo com a manobra era claro: aterrar o Valongo seria a forma de dar fim ao passado escravocrata no cais. Não foi possível. Como diz a historiadora Keila Grinberg em sua coluna de abril na CH On-line, “[a descoberta] servirá para mostrar que a cultura negra carioca, tão importante para a identidade nacional brasileira, tem origem em um episódio terrível”. E completa: “Disso, ninguém mais vai poder esquecer”.

Um dos planos para o ano que vem é finalizar no local um memorial à diáspora africana. “Não se trata de celebrar a escravidão”, defende Lima. “Queremos celebrar a cultura africana, aqueles que trouxeram nossos ritmos e sons. Costumo falar que, se não fossem eles, estaríamos ainda lamuriando nossas dores por meio do fado.”

Língua: do ‘nós pega’ à ‘presidenta’

Neste ano, do dia para a noite, só se falou em português. Português tem regra fixa? Houve apresentador de televisão que chiou dizendo que sim. Teve gramático famoso na televisão dizendo que sim. Mas houve também jornalista – e gramático – defendendo o contrário. O centro do debate? O livro Por uma vida melhor, que foi distribuído pelo Ministério da Educação para cerca de 500 mil alunos.

Recapitulando: o livro defende que o português não tem “certo ou errado”, mas apenas “adequado e inadequado”. Para exemplificar a questão, algumas sentenças foram postas em debate, entre as quais a mais polemizada: a paradigmática “nós pega peixe”, que, segundo o livro, apesar de ser considerada errada pela norma culta, pode não ser inadequada em algumas situações.

O curioso da questão é que, tão logo o livro foi lido com mais calma, as críticas começaram a arrefecer. Hoje alguns detratores da professora Heloísa Ramos, autora do livro, reconhecem que se precipitaram na crítica. Em resumo: falaram antes de conhecer o conteúdo a fundo. Mesmo assim, alguns pontos levantados nas críticas (e defesas) serviram ao debate, em maior escala, de questões que há muito tempo são restritas aos acadêmicos. Para nosso colunista, o linguista Sírio Possenti, isso é um bom sinal.

“Se alguém mudou de posição ou entendeu o fenômeno da língua de modo mais claro, a questão já valeu a pena. Muitas vozes diferentes circularam e muitos linguistas foram entrevistados”, diz Possenti. 

 “A comunidade intelectual brasileira não fez a sua revolução copernicana no campo das línguas”

“O que eu acho da questão? Complicado. Resumindo, acho que a comunidade intelectual brasileira não fez a sua revolução copernicana no campo das línguas. Ninguém defende que uma nova visão da química ou da física seja discutida apenas na universidade, ninguém quer que o aluno das escolas seja excluído desse tipo de debate. Tomara que a polêmica tenha ampliado, um pouco, essa visão sobre a língua.”

Em sua coluna de estreia na CH On-line, o linguista falou, também, da posse de Dilma Rousseff como ‘presidenta’ do país. Sim, ‘presidenta’, palavra distante do vocabulário nosso de cada dia, mas presente em grande parte dos dicionários. Muita gente torceu o nariz e discutiu a legitimidade do termo. Alguns, por mais que admitissem a correção ortográfica, chiaram com o que chamaram de “carga extra de feminismo”. Possenti não vê com esses olhos. É simpático à ‘presidenta’.

“A primeira acepção da palavra é ‘esposa do presidente’. Mas nesses casos o debate sobre língua embute uma questão ideológica, então politicamente tomo a posição por ‘presidenta’. Acho importante demarcar que temos uma mulher governando”, afirma.

Causa LGBT: conquistas e contradições 

Brasília também foi o centro de outro debate, dessa vez envolvendo outros poderes que não o da ‘presidenta’. Legislativo e judiciário debateram, discordaram, votaram e entrarão 2012 discutindo avanços e estagnações nas causas de lésbicas, gays, bissexuais e transexuais. Se por um lado houve vitórias óbvias para a comunidade LGBT na decisão do Supremo Tribunal Federal de reconhecer, em maio, a união homoafetiva, por outro o entrave na votação no Congresso do projeto de lei 122, que visa criminalizar a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, incomodou.  

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A tradicional parada do orgulho LGBT em São Paulo: este foi um ano de conquistas para o movimento. (foto: Yuri Alexandre / Flickr – CC BY 2.0)

No mesmo ano em que mais de 200 homossexuais foram assassinados no Brasil, o primeiro casamento civil entre pessoas do mesmo sexo foi celebrado por aqui. Contradições de um país que, segundo o sociólogo Luiz Mello, da Universidade Federal de Goiás, “quando avança de um lado, ganha resistência de outro”.

“No Brasil, o debate tem um caráter contagioso. Você não pode ser solidário à causa LGBT sem que a sua própria sexualidade seja colocada em xeque. Talvez haja uma dificuldade em reconhecer que essa causa é legítima a todos”, diz Mello, que participou, em outubro, de mesa sobre o tema no 35º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), em Caxambu (MG).

O sociólogo, embora se diga “sempre otimista”, é bastante realista sobre o futuro da questão em 2012. “Não vai acontecer nada em nível federal; é um ano eleitoral e geralmente nesse período o Congresso não se pronuncia.” 

Para ele, no entanto, é importante jogar luz, ao menos, sobre um tema no ano que vem: “Temos de garantir a laicidade do Estado”, defende. “As pessoas estão se matando na rua. E a sociedade resiste a tomar a causa como sua, porque o discurso religioso inflama a resistência e a aversão.”

O debate continua em 2012.

Thiago Camelo
Ciência Hoje On-line