Salto de qualidade genético

 

Os bilhões de neurônios de diferentes tipos presentes no cérebro humano dotaram o homem de capacidades extraordinárias. Mas como esse órgão se tornou tão desenvolvido? Um grupo de cientistas liderados pelo brasileiro Alysson Muotri, do Instituto Salk de Estudos Biológicos, localizado nos Estados Unidos, acaba de dar mais um passo para a solução desse enigma. Eles descobriram que um gene chamado L1 pode ser responsável pela enorme diversidade das células cerebrais. Esses genes são capazes de alterar a atividade e expressividade do DNA, ao criar cópias de si mesmos e inseri-las em outras partes do código genético, por meio de um processo chamado retrotransposição.

Até hoje a atividade do L1 era apenas conhecida em células embrionárias e cancerígenas. No primeiro caso, o gene aproveita o ritmo acelerado da reprodução, característico das células embrionárias, para se espalhar aleatoriamente entre as novas gerações celulares, sendo que ‘salta’ apenas sobre trechos do DNA que não são fundamentais à sobrevivência da célula. No caso do câncer, por outro lado, o gene salta descontroladamente sobre qualquer ponto da cadeia, mesmo sobre os que são importantes à sobrevivência das células, que se reproduzem de forma desordenada.
 
O estudo conduzido pela equipe de Muotri, publicado em junho na revista Nature , descobriu a presença do gene também em células-tronco neurais, que são a origem de todos os tipos de células do sistema nervoso. Ali, porém, a pesquisa revela que o L1 é inibido por uma proteína chamada Sox2, já que não é interessante que o gene ‘pule’ nas células-tronco neurais. Como delas será formado todo o sistema nervoso, um pulo em um gene ‘errado’ poderia comprometer toda a vida do organismo.
 
A pesquisa demonstra que o L1 apenas manifesta-se no sistema nervoso quando as células-tronco neurais diferenciam-se, entre outras, em células precursoras neuronais (NPCs), que formam os diversos tipos de neurônios. Nesse caso, o gene não tem mais a sua atividade inibida porque não há mais a inconveniência de um pulo ‘errado’: como as NPCs não se reproduzem, um eventual erro não seria passado adiante. Assim, o L1 passa a inserir-se em qualquer parte dos cromossomos, produzindo reações variadas. Ele pode desde alterar a atividade celular de maneira positiva até matar a célula, sendo que bons resultados são incorporados ao tecido nervoso, enquanto maus são eliminados, em uma demonstração clássica de seleção natural, que pode ser a origem de toda a diversidade celular dos neurônios.
 
O segredo da ativação do L1, segundo a pesquisa, pode estar no grupo de proteínas chamadas histônicas, em torno das quais se enrolam as cadeias de DNA. O processo de diferenciação celular afasta essas proteínas umas das outras e expõem seqüências de DNA. Um dos genes expostos, ao que parece, é o L1. Essa informação poderá ser utilizada para o tratamento de diversas doenças. “Os remédios usados contra depressão atuam diretamente no conjunto formado por histonas e DNA”, afirma Muotri. “Assim, quadros depressivos e doenças como autismo e esquizofrenia talvez possam ser causadas por uma atividade descontrolada de L1.”
Muotri considera que, apesar dos resultados apontarem para a importância do L1 na diferenciação das células nervosas, “ainda é difícil estabelecer até que ponto a quantidade de inserções de gene saltadores é capaz de influenciar a rede neural”. O cientista explica que os genes saltadores são elementos antigos da estrutura genética humana e, por isso, devem possuir uma importância evolutiva grande. “A descoberta é importante, é um momento excitante para estudar a neurociência”, afirma. No entanto, o pesquisador é cauteloso ao analisar os resultados obtidos. “O próximo estágio da pesquisa é tentar negar essas descobertas para verificar sua força”, conclui.


Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line
06/07/05