É muito comum que pacientes com doença de Alzheimer apresentem quadros de depressão nas primeiras fases de desenvolvimento da enfermidade, apesar da relação entre os dois problemas até hoje não ser clara. Um estudo brasileiro publicado no periódico Molecular Psychiatry apresenta evidências inéditas da relação molecular entre depressão e Alzheimer. A descoberta pode dar origem a novas estratégias de tratamento para a doença.
O estudo avaliou a ação de um peptídeo conhecido como beta-amiloide ou abeta, naturalmente presente em nossos cérebros. Nos pacientes com doença de Alzheimer, são registradas altas concentrações desse peptídeo, que formam grandes placas no cérebro e agrupamentos menores (chamados oligômeros) solúveis no líquido cefalorraquidiano, que banha o órgão. Esses oligômeros de abeta prejudicam as sinapses nervosas, que deixam de funcionar corretamente e causam os problemas de perda de memória e cognição associados ao Alzheimer.
O estudo, realizado por pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mostrou que esses peptídeos também podem estar relacionados com a ocorrência de depressão, um dos sintomas psiquiátricos mais comuns que acompanham as fases iniciais da doença de Alzheimer.
Para chegar a essa conclusão, os pesquisadores injetaram os oligômeros de abeta no cérebro de 100 camundongos e avaliaram suas reações 24h e sete dias após a aplicação. “Os resultados mostraram efeitos tanto de perda de memória como de depressão nas duas medições”, conta um dos autores do estudo, o biofísico Sérgio Ferreira, da UFRJ. “Além disso, identificamos que os peptídeos geraram processos inflamatórios no cérebro similares aos registrados em casos da doença de Alzheimer.”
Camundongos esquecidos e deprimidos
Os testes realizados pela equipe – embora sejam referência para esse fim – foram curiosos: incluíram, por exemplo, um ‘nado forçado’ e uma avaliação da resposta a experiências prazerosas.
No primeiro, os camundongos foram colocados para nadar por alguns minutos em recipientes transparentes cheios de água. Os animais normais, do grupo de controle, tentavam escapar se agarrando às paredes, enquanto os tratados com oligômeros desistiam e ficavam apenas boiando, um comportamento característico de depressão.
No segundo, foram disponibilizados dois bebedouros, um com água e outro com água com açúcar. Os animais normais preferiam a mistura doce, mas os tratados não demonstraram preferência – a depressão diminuiria os estímulos gerados por experiências prazerosas.
Em outro teste, que confirmou a associação entre a presença de oligômeros e a perda de memória, camundongos treinados para reconhecer determinados objetos eram apresentados a itens novos. Os animais normais passavam mais tempo explorando a novidade, enquanto os tratados com oligômeros exploravam novos e antigos objetos sem distinção, por não reconhecê-los.
O grupo também avaliou os efeitos de um antidepressivo, a fluoxetina, nos animais submetidos aos oligômeros abeta. “Os resultados de animais tratados com os oligômeros e, em seguida, com a fluoxetina foram semelhantes aos do grupo de controle”, conta Ferreira. “Isso mostra que o fármaco conseguiu reduzir os efeitos depressivos e de perda de memória produzidos pelos peptídeos nos camundongos.”
Inflamação e prevenção
Entre as novas perspectivas trazidas pelas descobertas, está a possibilidade de aplicar antidepressivos e estratégias de combate aos oligômeros para tratar o transtorno de humor e as perdas cognitiva e de memória associados à doença de Alzheimer. “Mostramos que oligômeros provocam um processo inflamatório e estão relacionados com a perda de memória e a depressão, mas ainda é preciso comprovar que existem associações moleculares entre esses efeitos e a inflamação”, explica o biofísico.
Entender os mecanismos de ação da fluoxetina no organismo pode dar uma pista importante nesse processo. “Uma das alternativas mais prováveis para explicar o sucesso do tratamento com o antidepressivo é justamente que ele apresente um efeito anti-inflamatório no cérebro, que levaria ao controle dos sintomas”, avalia Ferreira.
Mais conhecimento sobre o processo inflamatório pode significar um novo entendimento sobre a doença de Alzheimer. Em geral, segundo o biofísico, a inflamação no cérebro associada ao Alzheimer é explicada pela ação do próprio sistema imunológico sobre os neurônios que estão morrendo. “Com base nos resultados, podemos propor uma explicação alternativa: a produção de oligômeros já seria suficiente para gerar a inflamação, antes mesmo da morte das células”, conjectura.
Por isso, Ferreira defende a necessidade de intensificar os estudos de diagnóstico do Alzheimer, que, em geral, acontece em uma fase um pouco mais avançada da doença. “Se a doença estiver relacionada à inflamação e for diagnosticada bem cedo, seria possível pensar em medicamentos anti-inflamatórios que atuem antes mesmo da morte dos neurônios.”
Os resultados podem alterar a forma como a depressão associada ao Alzheimer é encarada clinicamente. “Hoje, ela recebe menos atenção clínica do que a perda de memória, mas mostramos que pode ser importante estudá-la”, avalia o biofísico. “Além disso, muitas evidências já indicavam que a depressão também aumenta o risco de desenvolvimento do Alzheimer, mas até agora não conhecíamos mecanismos que pudessem indicar qualquer associação clínica entre as duas doenças.”
Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line