Observar os impactos da ação humana na natureza não é difícil. No entanto, um artigo publicado na revista Science desta semana mostra que eles podem ser mais inesperados do que se supõe. Um grupo liderado por pesquisadores brasileiros identificou relação entre a diminuição da população de grandes aves frugívoras em áreas da mata atlântica e alterações evolutivas nas palmeiras da região. O processo deixou, em tempo recorde, a planta mais suscetível a mudanças climáticas e pode causar prejuízos ao seu ecossistema.
O estudo lançou mão de ferramentas estatísticas, análises genéticas e modelagens evolutivas para estudar a ecologia e a evolução de populações de Euterpe edulis – conhecida como palmeira juçara. Liderado pelo biólogo Mauro Galetti, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), o grupo comparou 22 áreas de mata atlântica com populações de palmeiras de sementes grandes e de sementes pequenas, para entender os motivos dessa variação. A análise estatística considerou 9 mil sementes e mais de 20 fatores, que iam do clima à fertilidade do solo de cada região.
O resultado mostrou que a presença de aves de grande porte (com abertura de bico maior que 12mm) é um fator determinante para essa variação: nas áreas em que estas se encontravam extintas ou muito diminuídas pela caça ou desmatamento, as sementes da palmeira eram menores e mais frágeis do que nas preservadas. “Só as aves maiores, como tucanos e arapongas, se alimentam das sementes maiores e fazem sua dispersão”, explica Galetti. “As aves menores, mais resistentes às mudanças no ambiente, só dispersam sementes menores e, com o passar das gerações, as árvores que dão sementes pequenas acabam favorecidas.”
Impacto sutil, mas definitivo
Este não é o primeiro registro do impacto da ação humana na evolução de espécies – basta lembrar das preocupantes superbactérias –, mas mostra em primeira mão o impacto da atividade humana na evolução de organismos tão complexos e que sequer eram afetados diretamente por ela. “É um impacto muito sutil, que mal pode ser percebido ainda, pois as populações de palmeiras não diminuíram nessas regiões, só se tornaram mais suscetíveis”, explica Galetti. “Por outro lado, são mudanças definitivas, pois alteram a ecologia da planta, ao tirar de circulação um de seus fenótipos.”
Também chama a atenção a velocidade com que a evolução ocorreu. As áreas em questão foram modificadas pelo homem a partir do avanço das lavouras de café e cana-de-açúcar do século 18. Para confirmar se esse tempo seria suficiente para uma mudança desse porte, o grupo realizou um estudo evolutivo pioneiro com a E. edulis, baseado na diferença de tamanho entre as sementes e em um ‘fator de hereditabilidade’ que valora o quanto certa característica está ligada à hereditariedade.
“O resultado mostrou que, se eliminássemos de uma vez todos os tucanos de uma região preservada, em apenas 75 anos todas as palmeiras produziriam apenas sementes pequenas”, afirma Galetti. “Muita gente pensa na evolução como um processo lento, ligado a grandes eventos, mas resultados como esse mostram que ela pode ser muito mais sutil e rápida, o que aumenta o impacto de nossas ações.”
No caso da palmeira juçara, a redução de sua variabilidade coloca em risco a própria espécie, já que as sementes menores são mais frágeis e suscetíveis ao ressecamento e, consequentemente, têm menos chances de resistir a qualquer mudança ambiental. “Se considerarmos que os modelos climáticos para essas regiões tropicais preveem climas mais quentes e secos, temos um grande problema.”
Uma das formas de contornar o problema seria investir no reflorestamento da região. Hoje, apenas 12% da mata atlântica está preservada e 80% do que restou do bioma é constituído por trechos pequenos demais para abrigar grandes aves e animais frugívoros. O primeiro passo, segundo Galetti, seria reintroduzir as palmeiras com fenótipo para frutos pequenos – já que faltam aves grandes no local. “Com o tempo, essas populações de pássaros poderiam ser recompostas – de forma natural ou não – e só então seriam reintroduzidas árvores com o fenótipo para frutos maiores”, explica.
As mudanças evolutivas observadas na palmeira, além de colocar a espécie em risco, também pode afetar o frágil equilíbrio ecológico das áreas já pressionadas pela atividade humana. Isso porque a E. edulis serve de alimento para dezenas de espécies e sua extinção provocaria danos à cadeia alimentar do bioma.
E a perspectiva pode ser ainda pior. “É muito provável que outras plantas da mata atlântica estejam passando por processos semelhantes sem que saibamos”, avalia Galetti. “E mesmo que ainda não tenha havido tempo para provocar esse tipo de evolução na Amazônia, por exemplo, a destruição da fauna pode levar a processos semelhantes por lá, assim como em áreas tropicais na África, na Ásia e nas Américas.”
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