Sobrevivência colorida

Enxergar cores como nós, humanos, é a exceção e não a regra entre os mamíferos. A maioria dos representantes desse grupo é daltônica: possui apenas dois tipos de células fotorreceptoras na retina e não enxerga todo o espectro de cores fundamentais (vermelho, verde e azul). A capacidade de distinguir variadas cores sem dúvida é valiosa no mundo das artes, mas pode ter sido também uma vantagem evolutiva fundamental dos primatas na fuga de predadores. É o que sugere um estudo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) apresentado ontem (28/08) na 29ª Reunião Anual da Federação de Sociedades de Biologia Experimental, em Caxambu (MG).

Entre os nossos parentes mais próximos, os macacos, existe uma grande variedade de visão de cores. Os chamados primatas do Velho Mundo, distribuídos na Europa, na África e na Ásia, são todos tricromatas, ou seja, enxergam as cores fundamentais com um humano normal. Já os primatas do Novo Mundo, localizados nas Américas, apresentam tanto indivíduos daltônicos quanto tricromatas, mesmo dentro de uma mesma espécie.

Durante muito tempo, a hipótese mais aceita para explicar o surgimento da visão de mais cores entre os primatas pregava que esse traço teria sido selecionado ao longo do tempo como uma vantagem na busca por comida

Durante muito tempo, a hipótese mais aceita para explicar o surgimento da visão de mais cores entre os primatas pregava que esse traço teria sido selecionado ao longo do tempo como uma vantagem na busca por comida. Enxergar frutos coloridos sobre a vegetação verde seria proveitoso. Outra teoria aponta que a habilidade também seria útil na detecção de parceiros sexuais. Localizar de imediato o traseiro vermelho de uma fêmea de babuíno no cio, por exemplo, colocaria o primata macho na dianteira na disputa por uma parceira.

Esses cenários, no entanto, nunca foram demonstrados na natureza e não explicam totalmente a diferença de visão entre primatas do Novo e Velho Mundo. “Apesar de haver vários estudos mostrando que em cativeiro os tricromatas identificam mais facilmente alimentos coloridos escondidos, não existe evidência disso no campo”, aponta o biólogo Daniel Pessoa, líder da pesquisa da UFRN. “Já na escolha de parceiros, a cor não é o único fator e talvez não seja o mais importante. O brilho das genitálias, que também pode ser percebido por dicromatas, indica igualmente bem o período fértil da fêmea.”

Pessoa supõe que a percepção de mais de duas cores entre os primatas teria evoluído como forma de detecção de predadores. A capacidade de distinguir, por exemplo, entre o amarelado da pelagem de um tigre e o verde da mata seria o fator que explica a disseminação do tricromatismo entre os primatas do Velho Mundo – animais que, embora maiores que os do Novo Mundo, durante milênios conviveram com carnívoros de grande porte.

Gorila
Os primatas do Velho Mundo, como o gorila, enxergam múltiplas cores, assim como os humanos comuns. Apesar de seu tamanho avantajado, durante milênios eles conviveram com carnívoros de grande porte. (foto: Manuel del Roj Diaz/ Flickr – CC BY-NC-ND 2.0)

Já no Novo Mundo, a coexistência de primatas daltônicos e com tricromatismo seria mais interessante. Isso porque, enquanto alguns primatas daqui ganhariam ao ver mais cores e identificar predadores, outros se beneficiariam de uma visão menos colorida na busca por alimentos. “A maioria dessas espécies se alimenta de insetos e é mais fácil localizar insetos camuflados na vegetação quando não há a distração das cores”, explica o pesquisador.

Encontre o predador

Para testar essa hipótese, Pessoa e sua equipe usaram um modelo computacional capaz de prever a visão de cores de várias espécies de primatas com base nas células fotorreceptoras que eles possuem. Com as informações de qual cor cada animal enxerga, o grupo pôde comparar a visão de primatas daltônicos e de tricromatas e a capacidade de ambos de identificar predadores contra um fundo de vegetação verde.

Os pesquisadores mediram a coloração de 28 pontos do corpo de sete predadores – como a onça pintada, a sussuarana e o gato do mato – e também mais de 100 pontos de regiões de mata, incluindo tonalidades de folhas e troncos. A coloração foi medida tanto sob a visão tricromata quanto a daltônica.

Os modelos de visão obtidos para cada animal foram analisados com uma fórmula que calcula a diferença entre as cores em cada ponto por meio de um coeficiente. Se o resultado da conta for maior que um, significa que existe um forte contraste entre as cores, que pode ser percebido pelo animal. Se for menor que um, por outro lado, significa que o contraste entre as cores não é significativo o suficiente para que o animal faça distinção.

O resultado do teste foi bem claro: os tricromatas apresentaram coeficientes de até cinco pontos, enquanto os daltônicos obtiveram um ponto ou menos, indicando que os tricromatas têm maior capacidade de perceber o contraste entre as cores de predadores e da vegetação.

Os pesquisadores fizeram ainda uma experiência com humanos para testar essa hipótese. Eles apresentaram fotos de mata, algumas com predadores escondidos, para um grupo de 40 pessoas – metade com visão de cores normal e metade com daltonismo. Os voluntários tinham que encontrar o animal nas imagens. O teste revelou que os daltônicos demoraram até 5 segundos a mais para achar o predador do que as pessoas que enxergam todas as cores.

Predadores
Os pesquisadores pediram que pessoas com visão normal e com daltonismo localizassem animais carnívoros escondidos em fotos de vegetação e verificaram que os daltônicos eram até 5 segundos mais lentos. (fotos: Daniel Pessoa)

“Pode parecer uma diferença pequena, mas temos que levar em conta que se trata de um teste em que as pessoas já sabiam o que procuravam”, comenta Pessoa. “Além disso, ter 5 segundos de vantagem em uma situação real de fuga de uma onça na natureza pode determinar um final feliz para o animal predado.”

Entre humanos

Na nossa espécie, o daltonismo é relativamente comum. Estima-se que esteja presente em cerca de 8% dos homens caucasianos. Os cientistas ainda não sabem explicar os mecanismos evolutivos por trás disso, mas existem algumas hipóteses.

Pessoa supõe que, do mesmo modo que foi vantajoso para os primatas enxergar mais cores para fugir de predadores, teria sido também para os humanos – o que explica a prevalência desse tipo de visão hoje. Porém, com o advento das sociedades primitivas e a vida em vilas, esse traço teria deixado de ter tanta importância. “A vida em sociedades organizadas diminuiu a pressão de predação e o daltonismo voltou a flutuar livremente e, por isso, uma taxa atual tão alta”, diz o pesquisador, que integra o grupo que não diferencia vermelho e verde.

Pessoa: “A vida em sociedades organizadas diminuiu a pressão de predação e o daltonismo voltou a flutuar livremente e, por isso, uma taxa atual tão alta”

Outro fator que poderia explicar a presença de daltonismo seria o desenvolvimento da pecuária. A visão colorida plena ajudaria na caça, mas, com a criação de animais, a necessidade de localizar presas rapidamente se perdeu.

Outros pesquisadores, porém, veem falhas na tentativa de explicar a evolução da visão de cores com base apenas na predação. O bioantropólogo Maurício Talebi, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), campus de Diadema, é um deles. Talebi, que estuda a visão do macaco muriqui, acredita que a escolha de alimentos é um processo complexo que deve ser considerado.

“Na natureza, a busca por comida é muito mais do que a mera identificação de cor em uma foto”, diz. “O comportamento animal em liberdade e as variáveis ecológicas também influenciam. Nesse tipo de estudo, temos que levar em conta o fator comportamental dos animais, além de outras modalidades sensoriais, como a audição e o olfato, para entender como cada uma contribuiu na evolução da visão de cores.”

Enquanto ainda há mais perguntas que respostas, Pessoa e equipe continuam as pesquisas e avisam que já está em andamento outro estudo que vai analisar a influência das cores na seleção de parceiros sexuais entre primatas.

Sofia Moutinho (*)
Ciência Hoje On-line

* A jornalista viajou para Caxambu a convite da Fesbe.

Este texto foi atualizado para incluir a seguinte alteração:
A pedido do próprio pesquisador, a formação de Maurício Talebi foi alterada de veterinário (sua graduação) para bioantropólogo (seu doutorado) e foi acrescentado o nome do campus da Unifesp em que ele atua. (01/09/2014)