Surpresa histórica na América do Sul

Comunidades primitivas baseadas na caça e coleta, sem formas de organização ou atividades minimamente elaboradas. Durante muito tempo, essa foi a imagem difundida por historiadores como retrato dos habitantes da América do Sul no chamado período cerâmico, situado entre os anos 3000 a.C. e 500 a.C. O equívoco, no entanto, foi finalmente desfeito este ano, por pesquisadores que encontraram evidências da existência de uma sociedade complexa na Bacia do Prata, sudeste do Uruguai, há 4,8 mil anos.

Ferramentas e sementes fossilizadas foram descobertas em escavações feitas na região de Los Ajos, no sudeste do Uruguai

Liderada pelo arqueólogo Jose Iriarte, do Instituto Smithsoniano de Pesquisas Tropicais, sediado no Panamá, a equipe escavou a região de Los Ajos – até então pouco explorada – e encontrou ruínas da comunidade. O artigo que divulga a descoberta foi publicado na Nature

em 2 de dezembro e relata que essa sociedade já praticava a arquitetura e a agricultura – técnicas que só seriam observadas mais tarde em outros grupos humanos do continente.

 

As construções, pertencentes ao período cerâmico, foram consideradas muito semelhantes às encontradas em outras regiões da América do Sul, como a Amazônia, mas muito mais antigas. Dispostas geometricamente de maneira a criar uma área comum, que servisse de ponto de encontro à população, já destinavam naquela época espaços específicos para a moradia, agricultura e fabricação de ferramentas – o que ainda não era feito em outras sociedades sul-americanas da época.

 

“Até 3000 a.C., as colinas da região eram utilizadas somente como casas por seus habitantes. Depois, passaram a servir também de cemitérios e oficinas para a produção de ferramentas, com locais exclusivos para cada tarefa”, conta Iriarte em entrevista à CH On-line

. “Essa transformação mostra elevados níveis de engenharia, organização e cooperação e indica o desenvolvimento de uma tradição arquitetônica inovadora e independente.”

 

Foram encontradas sementes fossilizadas de feijão, milho e abóbora (na foto acima, da esquerda para a direita), entre outras

Além da arquitetura, o que mais impressionou os cientistas foi a presença de fósseis vegetais. A análise paleobotânica de sementes preservadas de amido indicou o plantio de cultivares como milho, feijão, abóbora e tubérculos e confirmou a inesperada atividade agrícola. Nesse caso, essa sociedade teria sido a primeira a cultivar alguns desses alimentos na América do Sul.

 

“Antes da análise dos fósseis vegetais, raramente encontrados em sítios arqueológicos tão antigos, acreditava-se que a agricultura tinha sido difundida na América do Sul por tribos Tupi-Guarani há cerca de mil anos”, explica Iriarte. “Nossa investigação documentou que a agricultura realizada na região era muito mais antiga.”

 

O local ocupado pela comunidade tem a extensão de 12 hectares (120 mil m 2

) e deve por isso ter abrigado uma grande população. Os pesquisadores acreditam na possibilidade de existência de outras comunidades semelhantes num raio de dez quilômetros, apesar de as pesquisas arqueológicas terem privilegiado tradicionalmente a cordilheira dos Andes e negligenciado outras regiões.

 

Para Iriarte, a descoberta deve incentivar novas escavações, pois é um indício da existência de sociedades sofisticadas anteriores à invenção da cerâmica: “A aldeia de Los Ajos não é um fenômeno isolado e o próximo passo de nossa pesquisa será a investigação das relações entre ela e os outros complexos de colinas encontrados na região.”

Isabel Levy
Ciência Hoje On-line
28/12/04