Caça. Um tema ainda inacessível para grande parte da nossa sociedade, incluindo tomadores de decisões e formuladores de políticas públicas que regulem a prática. Afora a noção muito superficial de que caçar é ruim, proibido, ilegal, muito pouco se compreende sobre a dinâmica da caça nos confins da Amazônia, onde populações locais ainda dependem desta prática para sobreviver. Lá, onde as leis não chegam e a fiscalização não enxerga, as comunidades criaram seus próprios códigos de utilização dos recursos naturais, com regulamentações próprias para evitar danos ao meio ambiente.
De acordo com a legislação brasileira, a caça é crime, a menos que a finalidade seja saciar a fome – prática denominada caça de subsistência. Populações de diversas partes do Brasil a praticam sobretudo em períodos de escassez de outros alimentos. “No período das cheias na Amazônia, por exemplo, a pesca se torna mais difícil, e a caça é a fonte mais importante de proteínas dessas comunidades”, conta a bióloga Marina Albuquerque Regina de Mattos Vieira, colaboradora no Instituto Piagaçu, que estuda as práticas de caça na região.
Segundo a especialista, é um desafio compreender a dinâmica da caça nessas regiões extensas e de difícil acesso – porém, um desafio necessário de se cumprir, para que sejam possíveis e efetivas as políticas públicas de conservação e uso sustentável das espécies locais. Para conhecer melhor as práticas dos caçadores amazônicos, ela decidiu contar com o apoio das próprias comunidades, adotando uma metodologia conhecida como monitoramento participativo – isto é, em que os ribeirinhos coletam e refletem sobre os dados junto com o pesquisador. O estudo já foi aprovado para publicação na revista Conservation and society.
“É de interesse dos moradores da mata que os recursos sejam bem geridos, e é impossível que o pesquisador acompanhe todos os episódios de caça; assim, o monitoramento participativo é uma importante ferramenta para a coleta de dados de uma forma mais ampla e acessível”, explica Vieira. Cabe à pesquisadora sistematizar a coleta de dados, analisá-los e devolvê-los à comunidade, para que discutam também qual a melhor forma de utilizar o conhecimento gerado. “Saber que espécies são caçadas e quais delas estão correndo riscos é essencial para que a comunidade reflita sobre o uso da fauna e a regulação da prática”, pondera.
Autorregulação
Apesar de ser uma prática malvista e, na maioria dos casos, ilegal no país, muitas famílias amazônicas fazem uso da caça e regulam-na por conta própria. “É preciso dar visibilidade a isso, desmistificar a prática para conhecer e gerenciar melhor”, aposta a pesquisadora.
Em seu trabalho, Vieira contou com a ajuda de 37 famílias da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Piagaçu-Purus, no Amazonas, para coletar os dados. O que encontrou, apesar da falta de regulamentação oficial para a atividade de caça, foram regras e normas estabelecidas dentro da comunidade, criando uma dinâmica de utilização de recursos sem prejuízo à fauna local. “A frequência da caça é quase diária no período da cheia, mas a maior parte das espécies não está diminuindo no número de animais”, diz a bióloga.
Segundo ela, a caça na Amazônia envolve regras implícitas, rituais e uma série de práticas intrínsecas ao estilo de vida dos moradores – tudo isso acordado de maneira informal, mas muito sólida. “Localmente, é possível encontrar uma série de regulamentações”, afirma. “Se, por exemplo, algum grupo começa a se exceder na caça e prejudicar a comunidade, níveis de controle de quantidades de animais que podem ser caçados são estipulados pela população local”.
Por leis mais adequadas
No inciso primeiro do artigo 37 da Lei de Crimes Ambientais (Lei 9605/98) o texto afirma que o abate animal não é crime se o motivo for saciar a fome do agente (que executa a caça) ou de sua família. Para Vieira, o texto é muito vago, permitindo várias interpretações. “A regulamentação mais específica daria amparo legal para comunidades que dependem da caça – que não ficariam à mercê das interpretações que os fiscais podem ter da lei; delimitaria os papéis do caçador e dos fiscais e evitaria que a caça aconteça de forma desordenada”, argumenta.
Biólogo e coordenador do Núcleo de Pesquisa e Monitoramento do Ibama, Rossano Marchetti Ramos diz que o acesso aos dados é um dos maiores problemas relacionados à pratica da caça no país. “A caça de subsistência talvez seja uma das modalidades de extrativismo mais amplamente utilizadas na Amazônia e temos pouquíssima informação dos órgãos oficiais”, afirma. “É uma atividade que fica numa zona cinza do ponto de vista legal e os órgãos de meio ambiente não se propõem a enfrentar o tema. É, na minha opinião, quase um tabu entre os gestores de políticas públicas e isso impede o governo de reconhecer e acessar este fato com melhor propriedade”.
Ramos vê no monitoramento participativo uma boa opção para desvendar o problema da caça no Brasil. “A coleta colaborativa, embora envolva algumas armadilhas, é uma das melhores formas de se obter informação nesse contexto, principalmente se queremos incitar reflexão e introduzir técnicas de bom manejo pela comunidade”, finaliza.
Everton Lopes
Ciência Hoje On-line