Triângulo biológico

Quando uma planta é atacada, seu sistema de defesa se prepara para eliminar o invasor. A cana-de-açúcar, no entanto, subverte esse processo. Ao ser perfurada por uma espécie de lagarta, ela se arma contra a invasão de fungos oportunistas – outra praga do canavial.

A descoberta, feita por acaso, é resultado da cooperação entre cientistas da Universidade de São Paulo (USP), do Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Etanol e da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

Em geral, o sistema defensivo das plantas é rápido e direto. A maioria das espécies responde a uma invasão em até seis horas, com substâncias direcionadas ao agressor imediato. Mas o ataque da lagarta conhecida como broca provoca uma reação diferente na cana. 

Quarenta e oito horas depois do contato, a cana produz sugarina, uma proteína inofensiva à lagarta, mas capaz de combater fungos causadores da podridão vermelha

Quarenta e oito horas depois do contato, a planta produz sugarina, uma proteína inofensiva à lagarta, mas capaz de combater fungos causadores da podridão vermelha, doença responsável pelas maiores perdas nas safras de cana e que depende dos furos deixados pela broca para se estabelecer.

O engenheiro agrônomo Marcio de Castro Silva-Filho, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiróz (Esalq/USP), explica que, a princípio, os experimentos tinham como objetivo verificar os efeitos da sugarina no combate à broca. Isso porque já se sabia que a produção dessa proteína aumenta significativamente após o ataque da lagarta.

Ao observar que a sugarina não causa dano ao inseto, os cientistas decidiram analisar a possibilidade de o sistema de defesa da planta ser acionado de forma indireta. Como a relação entre o ataque da broca e o aparecimento da podridão vermelha já era conhecida, os pesquisadores repetiram os testes com dois fungos: o Fusarium verticillioides e o Colletotrichum falcatum.

Para avaliar todo o processo, foram colhidas amostras de RNA de 12 plantas, divididas em três grupos de quatro. O primeiro foi danificado mecanicamente com pinças, o segundo foi atacado pela broca e o terceiro foi mantido inalterado – sendo utilizado como controle.

Duas amostras de cada planta foram colhidas com 0, 6, 12 e 24 horas de experimento. A expressão de sugarina foi muito maior nos casos de furos feitos pela lagarta.

A etapa seguinte foi colocar a proteína em contato com os fungos, que sofreram apoptose, um tipo de morte controlada das células. Apesar de não curar totalmente a podridão vermelha, a sugarina é capaz de amenizar seu impacto na plantação.

Morfologia das hifas
Morfologia das hifas (filamentos celulares dos fungos) do ‘C. falcatum’ antes (esquerda) e depois (direita) do contato com a sugarina. (imagens: Flávia Pereira Franco)

Contornando os prejuízos

A sequência de ataques da broca e dos fungos, conhecida como ‘complexo broca-podridão’, acarreta grandes prejuízos para os produtores de cana-de-açúcar. O inseto penetra na planta e permanece por 40 dias, até virar mariposa. Nesse período, devora a sacarose da cana, que também é usada pelos fungos, gerando perdas significativas na produção de açúcar.

De acordo com Silva-Filho, a alta densidade populacional da planta não permite que haja separação entre exemplares saudáveis e infectados durante a colheita.

O pesquisador ressalta, no entanto, que os maiores prejuízos estão relacionados à produção do álcool. Nesse processo, a fermentação natural da cana e da podridão vermelha concorrem, fazendo com que a quantidade de combustível obtida seja bastante reduzida.

Cana contaminada
Variedade de cana-de-açúcar vítima do complexo broca-podridão. A sequência de ataques da broca e dos fungos acarreta grandes prejuízos para os produtores de cana-de-açúcar, sobretudo na produção do álcool. (foto: Flávia Pereira Franco)

Uma das formas de contornar o prejuízo seria o desenvolvimento de fungicidas capazes de exterminar o F. verticillioides e o C. falcatum antes de atacarem a cana – em geral, eles já estão nas plantações, esperando a oportunidade proporcionada pela broca. Mas, até hoje, não foi possível desenvolver um produto economicamente viável com esse fim.

Outra possibilidade é o desenvolvimento de variedades mais resistentes de cana. Para isso, os pesquisadores estão estudando a diferença na regulação de sugarina entre as diversas variedades da planta. “Foram observadas duas formas da proteína”, relata Silva-Filho. “A sequência de aminoácidos é 90% semelhante, mas em cada planta as quantidades produzidas são diferentes. Quer dizer, um espécime pode secretar mais sugarina1 ou sugarina2. Estamos estudando se os maiores níveis de expressão das sugarinas estão relacionados à maior tolerância à presença dos fungos.”

Yuri Hutflesz
Ciência Hoje On-line